Estava deitado em minha rede, cumprindo rigorosamente meu confinamento domiciliar na varanda de meu apartamento, lendo um livro de Quevedo (1580-1645) -“Os Sonhos”- quando, num apartamento em frente ao meu, uma lâmpada começou a piscar, assinalando o fim de sua “vida útil” (o termo sugere que há vidas “inúteis”! Eu acredito…). Não sei por que razão ocorreu-me perguntar sobre que vidas, que espaços, que passados, sobretudo que ilusões aquela moribunda lâmpada iluminara ao longo de sua “vida”? Digo melhor: de quantas ilusões uma vida é iluminada para que ela seja… “útil”? E o que acontece com uma vida quando lhe falta o consolo das ilusões (inclusive a ilusão da “utilidade”)? Quais foram, afinal, as ilusões que preencheram minha própria vida?
Penso, nesta hora já tardia, que só podemos ter certeza do momento presente. Sobre o futuro todo mundo se engana. Mas será que o presente nos dá esta certeza? Provavelmente não, pois como é que aquele que não conhece o futuro pode compreender o sentido do presente? Se não conhecermos o futuro a que o presente conduz como poderemos dizer que esse presente é bom ou mau, que merece nossa adesão, nossa desconfiança ou nossa raiva? As grandes decisões de nossas vidas realizadas no passado– casamento, profissão, filhos, opções políticas, amizades, leituras- foram tomadas na ignorância, na “Idade da Ignorância” (como diz Milan Kundera), ali onde começamos algo e não sabemos como terminará. Um dia saberemos e compreenderemos muitas coisas, mas será tarde demais, pois toda a vida terá sido decidida numa época em que não sabíamos de nada. Eis porque é no presente, neste presente, que posso saber e julgar a respeito das decisões que tomei naquela “Idade”, e este momento de confinamento forçado me parece apropriado para uma avaliação das escolhas que fiz. Minha vida poderia ter tomado muitas direções, mas foram aquelas decisões que me conduziram até aqui. O problema, pois, não está no amesquinhamento da esperança que o futuro comporta, mas na dilatação da lembrança, ou seja, no passado e o que fazer dele. Não que ele não possa ser manipulado ao bel gosto de meus interesses, mas ele é o único que pode ter efeito sobre mim: não posso nem lembrar nem manipular o futuro, não posso acertar contas com o que virá; só o meu passado me pertence e é com ele que terei de viver até o fim. Quanto ao futuro…
A lâmpada do vizinho finalmente queimou, mas o que ela iluminou (enquanto teve “vida útil”), inclusive em mim, do outro lado da rua, talvez permaneça. Assim espero!
Flávio Brayner (UFPE)
Coordenador do Núcleo de Educação da Rede de Associados Letras & Artes – LETRART
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