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Carta de Ivanilde Morais de Gusmão a Clarice Lispector

ivanilde

II COLETÂNEA DE MEMÓRIAS: CARTAS A CLARICE LISPECTOR

Recife, julho de 2020

Estimada escritora Clarice

 

Aproveitando esse momento de reclusão, de recolhimento obrigatório para todos, forma de sobreviver ao caos que se espalhou mundo afora, escrevo para te dizer o quanto a releitura dos teus escritos está ajudando a sobreviver a esse tempo partido de seres humanos perdidos. Foi, exatamente, nos teus escritos que encontrei uma reflexão que me deixou perplexa e curiosa, quando afirma que “achar-se é um perder-se a si próprio”, e que o mistério do destino do humano é que “somos fatais, mas temos a liberdade de cumprir ou não o que o destino nos reserva”. Só tem um detalhe importante, de acordo com a minha compreensão da vida, o de que depende apenas de nós mesmos realizarmos ou não esse destino. É a partir daí que abordo algumas questões e te coloco a par do que ocorre neste mundo.

Vive-se neste momento num mundo que parecia ter respostas para todas as questões e tudo estava aí para ser realizado, mas, qual o quê, é a mesma sociedade que atingiu um grau tão alto de desenvolvimento que vem a cada dia se desalmando e perdendo cada vez mais o sentimento de humanidade. Vivendo essa realidade, tentando compreender como se chegou a essa situação, fui buscar nos livros aqueles que ajudassem a entender a angústia e o sofrimento que está tomando conta de todos. Foi então que lembrei os  teus escritos, a partir dos quais me veio a ideia de que é possível encontrar alguns indícios de respostas para sobreviver a essa pandemia, não só virótica, mas de destruição da alma.

O caminho mais fácil de chegar a ti foi através de carta; por isso aqui estou para dizer o que preciso para compreender o sentimento que hoje tomou conta de todos nós humanos e, como sabias analisar com profundidade os problemas que emergiam dos conflitos que  enfrentamos diante de uma sociedade que vem se deteriorando ao longo do tempo, é a teus escritos que recorro em busca de algum entendimento.

Tentemos explicar o que ocorre. Enfrentamos  nesses  meses uma grande epidemia que se transformou numa pandemia. A solução imediata era o recolhimento, o confinamento para que não se espalhasse.  O mais grave é que estamos vivendo num  silêncio, mesmo que durante toda a vida tenhamos adiado o silêncio. Agora, diante do desprezo pela palavra, diante de tantos discursos vazios e falsos, é preciso começar a falar; só que diante de tantos véus, meios de manipulação, ninguém ousa falar ou provocar acontecimentos que esclareçam a situação na qual o mundo se encontra. Daí esse silêncio sobre a verdade se alarga, e informações falsas tomam conta do sistema de comunicação. Para não se deixar enganar é necessário ficar atento às várias falas, aos diversos discursos enganosos.

O silêncio,  antes dessa miséria que atingiu o mundo, indica que todos se deixaram enganar pelo brilho falso de uma realidade em que tudo se torna mercadoria. O silêncio da verdade é usado como instrumento de poder para ninguém ter acesso ao funcionamento e à essência de uma lógica cuja busca é o ter, e não o ser; uma vez que os indivíduos são consumidores de inverdades e se preocupam apenas consigo mesmos. O meu silêncio até determinado momento não sabia e talvez nunca saiba na essência o que significa a realidade. Às vezes, olhando o instante que se observa tanto na praia quanto numa festa, percebo com leve apreensão irônica aqueles que num rosto sorridente e escurecido revelam o ódio à humanidade, enquanto os outros ficam em silêncio. Um silêncio e um destino que parecem escapar, como o fragmento de um hieróglifo representando uma sociedade que precisa ser  morta, eliminada, que sobreviva apenas quem conseguiu produzir para o bem da humanidade.

A surpresa me toma de leve diante dessa pandemia que nos assusta, só agora estou sabendo que era uma surpresa, nos bastidores do poder já era sabido, mas era preciso subestimar o que emergia e  tomava de assalto o mundo que, num primeiro momento, não sabia o que fazer e como enfrentar algo nunca antes visto. É que os olhos assustados de alguns viventes não conseguiam compreender porque havia um silêncio como só se via nos anos de repressão. E como só se  ouvia o silêncio, que assustava a todos, alguns conseguiam ver e ouvir a partir de um sussurro ou de um simples comentário.

Nunca, até então, ninguém  havia  de pensar que um dia iria ao encontro de um silêncio num tempo partido no qual os que partem não têm sequer um réquiem.

Agora, já é possível ouvir um ruído neutro de coisa. Era o que fazia a matéria de seu silêncio invisível, quase intocável. E assim esse ser silencioso e sorrateiro se espalha tranquilo, hospedando-se nos corpos, o que gera uma compacta raiva e leva o seu hospedeiro ao sopro final em busca de ar. Esse ser que busca hospedagem é representante de um silêncio ao qual se pergunta: Esse silêncio é mesmo um silêncio ou uma voz alta e muda por trás do silêncio imóvel que agora se movimenta nos meios de comunicação e que, como toda escuridão, é desconhecimento da essência da realidade? Uma sociedade  que já teve seu período áureo, que superou o servilismo e lutou, junto com os produtores da riqueza, pela destruição de uma ordem à qual todos estavam presos, por um mundo em que a liberdade ia ser construída. É em meio a esse movimento de separação que surge a necessidade do Estado enquanto instituição que administra a sociedade.

O mais importante disso tudo é saber que há pessoas, em diversos ramos de  atividades, que precisam agora estar no front para ajudar essa sociedade a sobreviver, principalmente os médicos, aliás, todos os profissionais da área de saúde, de abastecimento, de comunicação e distribuição. Estes são verdadeiros “anjos” do apocalipse que, com seu compromisso com a humanidade, arriscam suas vidas para que os demais possam sobreviver. Na realidade, se pararmos um pouco para tentar compreender o porquê do surgimento desse inimigo que sai “devorando” as pessoas, os seres humanos que vivem, tem-se a impressão de que é como um “castigo” da Natureza Mãe pela forma como tem sido tratada, violentada, queimada, destruída. Todo ecossistema comprometido com uma variedade de formas de poluição impossível de se imaginar. Uma das questões mais importantes nesse momento de tempo partido, de recolhimento, é como se comportar; como suportar a ausência dos entes queridos; como não se dar conta de que tudo está em transformação? E se a previsão tivesse sido de que o ano de 2020 iria começar com uma violenta e assustadora catástrofe como se um apocalipse viesse para destruir a Terra?  Então, como uma vingança ou punição dirigida pela Natureza, em decorrência da forma como vêm sendo utilizados seus recursos, esta é sua maneira de impedir que seja destruída por uma catástrofe inimaginável e, nesse acontecimento, a espécie humana também desapareça.

A catástrofe se instalou por meio de um vírus invisível, mas de um poder destrutivo inimaginável, com força avassaladora tal qual um terrível furacão. Nesse tipo de catástrofe, uma das primeiras medidas é o isolamento social, que se tornou uma realidade em todos os países para impedir que os danos sejam maiores. E na medida em que as pessoas são obrigadas ao confinamento por muito tempo, em alguns lugares já passa de sessenta dias, a situação vai se tornando insuportável, principalmente nos países mais carentes e nas periferias das cidades onde família inteiras vivem em pequenos cubículos. A  questão se torna mais grave porque as pessoas não têm acesso aos sistemas de esgotamento sanitário, de abastecimento de água e condições materiais para manter um  padrão razoável de higiene, evitando que a epidemia se alastre ainda mais. Todo esse quadro pode gerar situações  insuportáveis. Daí o questionamento, como enfrentar essa situação e impedir que o mal se espalhe por toda a sociedade gerando uma situação de pânico?

A sociedade capitalista vem passando por várias e profundas crises e, para sobreviver, tem cada vez mais concentrado a riqueza e aumentado com espantosa gravidade a exclusão de grandes parcelas da população. Esta, por sua vez, levada ao nível de miserabilidade, requer que o sistema seja superado urgentemente por uma organização social mais humana ou haverá um retorno à barbárie. Não como no tempo em que os seres viviam nas cavernas, seu habitat natural, pois, com o avanço sofrido pelas forças produtivas, estamos mais próximos a uma  “lepra civilizada”. A partir do momento em que uma parte da humanidade se apropria de toda a riqueza material e espiritual criada pela sociedade, e destitui a outra parte dessa riqueza, põe-se a necessidade de desencadear um processo de transformação da realidade. A riqueza material e espiritual é o mundo efetivado pelo homem; portanto, aquele que está desprovido de quaisquer riquezas e, mais ainda, sem nenhuma chance de usufruir dos benefícios gerados nesse processo, encontra-se destituído da morada mesmo do homem. Num mundo de riquezas, aquele que está privado desses benefícios […] retorna à caverna, mas regressa a ela sob uma figura estranhada, hostil. O selvagem na sua caverna – esse pitoresco elemento natural que se oferece para fruição e abrigo – não se sente estranho, sente-se, antes, como em casa, como o peixe na água. Mas o porão dos pobres é uma habitação hostil.

A humanidade enfrentou duas grandes guerras, grandes conflitos localizados em várias partes do mundo, mas estamos sendo afetados não como fomos na I e na II guerras, ou como se houvesse alienígenas, ou mesmo uma III Guerra Mundial. Trata-se de um inimigo que não se conhece, invisível, somente identificável por alto grau de conhecimento científico. A gravidade está não apenas na mortandade, mas também nas consequências graves em termos de economia, de geração de renda e emprego nesse modelo de organização social. Aqui no Brasil, muito antes do Coronavírus chegar, a  Organização Mundial da Saúde (OMS) declarou que um vírus se espalharia por todo o planeta, e que a imediata posição era de isolamento completo para que a pandemia não causasse tanto prejuízo social, político e econômico. A situação de quarentena tem que ser enfrentada com medida obrigatória de isolamento, fato que vai gerar consequências não só quanto ao  isolamento social, mas sobretudo na economia, comércio e, principalmente, nos pequenos e médios negócios. Essa situação pode gerar sérios problemas envolvendo saúde, sobretudo mental, quando, por razões óbvias, as pessoas que já tinham problemas de saúde, sem poder sair, circular, podem passar a ter problemas de ansiedade, pela incerteza sobre quando a situação vai ser controlada e tudo vai voltar ao normal; claro, não como antes, mas a recuperação do cotidiano.

Diante do quadro que a sociedade tem enfrentado, é preciso saber como cuidar da saúde das pessoas, não só daquelas atacadas diretamente pelo vírus. Estas têm que ter um sistema de atendimento emergencial para que a Pandemia seja controlada. Precisam ser levados em conta os problemas de relações, de conflitos que ocorrem em situações de risco e de aglomeração, principalmente entre as populações carentes. O fato é que a situação favorece o fenômeno da violência, sobretudo, a violência doméstica. Daí a importância de implementação de medidas no período de quarentena, de atendimento não só material, mas mental e de sobrevivência, para que seja possível a superação e o resgate de uma sociedade que não mais será a mesma. É preciso, então, que se esteja preparado para um novo mundo, uma outra forma de sociedade que não seja a da exploração e exclusão, mas a da união.

É importante e urgente uma reflexão não só sobre a emergência do isolamento, mas também sobre como cuidar de uma população cujas atividades de trabalho, estudo, lazer e cultura foram retiradas de um golpe do seu mundo cotidiano. A preocupação é que que passado esse tempo partido, no qual as pessoas estão como perdidas, elas consigam  retomar a sua vida normal. Sabe-se que as relações sociais, de trabalho e a economia não serão as mesmas, porque a sociedade deverá passar por uma grande transformação. É preciso, então, identificar quais seriam as propostas a serem colocadas em prática;  nenhuma questão a esse respeito foi colocada até o momento. Essa pandemia tem se tornado muito mais grave na realidade brasileira, uma vez que a sociedade tem de enfrentar não só o inimigo mortal para o qual não se preparou – dado que nenhuma medida preventiva foi tomada, ao contrário, o próprio fenômeno foi subestimado pelas autoridades -, mas também a crise causada pela pandemia, junto à crise política e econômica vigente no país.

Ao se analisar na História as transformações sociais, políticas e econômicas decorrentes da passagem da ordem feudal à sociedade burguesa, verifica-se que geraram  uma  revolução política, na qual foram estabelecidos os direitos dos indivíduos, não como privilégios, tal qual no antigo regime, mas como direitos humanos.  É preciso ressaltar que em determinado “estágio de desenvolvimento, as forças produtivas materiais da sociedade entram em contradição com as relações de produção existentes ou, o que é sua expressão jurídica, com as relações de propriedade no seio das quais se tinham movido até então.” Assim sendo ocorre que  “de formas de desenvolvimento das forças produtivas, estas relações transformam-se no seu entrave. Surge então uma época de revolução social”.

Na realidade as transformações econômicas  de base material vão alterar também as formas jurídicas, políticas, religiosas, artísticas ou filosóficas; ou seja, as formas ideológicas por meio das quais os homens tomam consciência… deste conflito”. No atual momento, o inimigo com que a sociedade embate é invisível e até  então não identificado completamente. Nem a ciência, com todo seu desenvolvimento, conseguiu identificar a sua origem e espécie, muito menos a arma para combatê-lo diretamente. O mais seguro e rápido para evitar a extinção da própria espécie é decretar o isolamento completo, a quarentena; utilizada em outros momentos históricos semelhantes. Em meio a essa circunstância, cada episódio gera grandes transformações nas relações sociais. Portanto, a coisa  que gerou esse quadro de miséria, e isso que começa acontecer, é  uma coisa que tenta encontrar uma saída. Nesse momento de miséria é preciso construir uma outra vida, uma outra forma de viver. Na forma de organização atual, no caminhar em busca da solução, perdeu-se muita coisa, inclusive  o que era essencial.

E na medida em que se constata a ausência de proposta de resgate da caminhada humana ao seu destino, humanizar-se cada vez mais, a falta e/ou ausência de conhecimento da própria realidade assusta, e o mais grave é que não se observa nenhuma indicação que  aponte para uma perspectiva de superação dessa realidade, mesmo após esse tempo partido em que se vive. Não há previsão de mudança quando as pessoas voltarem às atividades normais. Em alguns países, essa volta está sendo gradativa, mas aqui no Brasil as informações são controversas, e como se publica muita inverdade com o objetivo de confundir a população para que ela não veja claramente onde a miséria política, econômica e social está nos levando. O aumento gradativo das pessoas contaminadas por esse vírus que invadiu todas as nações é assustador, o quadro de mortandade exibido diariamente nos meios de comunicação, sem que se apresente proposta de solução.

Portanto, todo esse quadro nos aterroriza. Daí fui buscar na tua escrita tão reflexiva, mesmo que não trate diretamente dos problemas político-econômicos, a relação entre o humano e a humanidade, especificamente do indivíduo nessa organização social na qual as relações se tornaram mercantis. A tua escrita é de uma clareza e profundidade que nos leva a procurar compreender o sofrimento, e como é possível criar caminhos para continuar a construção da humanização que, como destacas em teu livro, é sempre um aprendizado.

Para finalizar, pedindo desculpas pela extensão desta missiva, trago aqui uma frase bíblica que muito me agrada e me toca:

“Não atires pérolas aos cães…”

Abraço fraterno e o agradecimento por ter tido a oportunidade de chegar aos teus escritos e neles mergulhar para sobreviver, compreendendo um pouco mais o que é viver numa sociedade que destrói o homem;  a batalha primeira é encontrar o caminho para resgatar  os sentimentos de humanidade que foram gerados ao longo do processo histórico.

Com meu abraço fraterno.

 

IVANILDE MORAIS DE GUSMÃO é advogada, professora, autora de vários títulos publicados no Brasil e exterior, organizadora da coletânea Tempo partido – 2020: resgatando sentimentos de humanidade, editada pela Novoestilo Edições do Autor em 2020. É estudiosa da obra do filósofo Karl Marx e coordenadora do Núcleo de Filosofia da Rede de Associados Letras & Artes – LETRART.

http://www.ivanildemorais.com

morais.ivanilde@gmail.com

 

 

https://www.culturanordestina.com.br

Clique no Edital de participação da II COLETÂNEA DE MEMÓRIAS

https://drive.google.com/file/d/1B1fj2FKG6pBUcWdA1q2f8VOaq-avPx96/view

3 respostas

  1. Que carta maravilhosa! Para se ler e reler! Parabéns, Ivanilde, por tão profundo mergulho.
    Beijos.

    1. Excelente texto. Sua bela carta traça um panorama que Clarice leria com a preocupação, a mesma que caracterizava sua forma de ver a vida. Pensaria em soluções? Não sei. Mas o importante é fazer como você fez: apontar com lucidez as mazelas, passo imprescindível para combatê-las. Parabéns Ivanilde, é sempre agradável e ao mesmo tempo instrutivo ouvir ouvir sua voz.

  2. Olá Taciana, não tinha percebido que minha missiva tinha ficado tão longa. Essa foi a forma de refletir sobre esse tempo partido que estamos vivendo.
    Espero que outras pessoas que cheguem a ela, leiam e reflitam sobre esse momento.
    Precisamos expressar e divulgar esse sentimento para que seja possível as gerações futuras terem conhecimento dessa realidade!!!
    Abraço
    Ivanilde

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