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Carta de Paulino Fernandes a Monteiro Lobato

COLETÂNEA DE MEMÓRIAS CARTAS A MONTEIRO LOBATO

Carta a Monteiro Lobato, de Taubaté, São Paulo

Caro Lobato,

Quando me vi ali sozinho na biblioteca, naquele silêncio, cheiro e cor próprios do ambiente, pensei: bom se tu estivesses aqui para conversarmos, pessoalmente! Para ser mais franco, imaginei que aparecerias ali de repente. Correrias de forma decidida por entre as estantes, como se quisesse garantir que tudo o que deixaste ainda estivesse ali, da mesma forma, mesmo que em outro tempo e lugar. O pensamento voou assim como os meus olhos que, involuntariamente me convidaram a andar por entre o acervo. Sinto que tremi, ao me deparar com tua foto na parede próxima ao espaço reservado para tuas obras. Teu olhar parecia interrogar-me, só com o franzir de tuas marcantes sobrancelhas. Confesso que hesitei em seguir com a empreitada, desafiante, de percorrer um pouco mais o local. Tremi. Quis recuar. Uma claridade produzida pelo sol, de repente invadiu o espaço, através de uma alegre fresta vinda do alto. As luzes produziram uma ilusão de ótica que me pareceram ter o parado de teu rosto mudado, para um movimento dos olhos, que antes só me espreitavam. E o franzir frontal de outrora se juntava agora a um sorriso convidativo a ir adiante. Quando retornei o olhar, deparei-me com a capa ilustrativa da turma do Sítio. Estranho, mas verdadeiro. Estavam todos a rir de minha reação ante o retrato. E não sei como cabia todo mundo ali, com seus largos sorrisos, até o pobre Marquês nos braços daquele enorme polvo que tu descrevera entre as tantas reinações de Narizinho. A situação me levou a rir também, mas antes que eu me recompusesse, zás-trás fui arrastado para dentro do livro, e senti meu corpo viajar por todos eles, como um convite do tipo “Decifra-me ou te devoro”. Vi de Saci a Emília; de Visconde a Dona Benta, mas no trajeto me pareceu que alguém tentou me puxar pelo braço, como a querer me dizer algo. Por estar embalado na viagem e maravilhado ante tudo o que via, não consegui demorar, a ponto de escutá-la. Ainda recuei a cabeça e apurei um pouco o olhar. Espere. Só agora descrevendo essa fantástica aventura, consegui lembrar. Era Tia Anastácia! Sim, era ela! Como pude esquecer?! Só lembro que ela fazia um gesto de indignação. Espero que um dia tudo fique em paz. Não só com ela, mas com aquele pessoal dos Urupês, sabe? Ah, tenho de te contar! Jeca acabou sendo reconhecido com o emplastro. Não o do Brás Cubas, mas o famoso “Biotônico Fontoura”. É verdade, ficou forte, assim como todas as tuas criações. Quanto a isso, podes ficar tranquilo. Já se passaram que não te vemos, mas ficaram todos guardados aqui. E foram replicados, reproduzidos; lembrados e relembrados em peças e exposições. Até tua célebre frase “um país de faz com homens e livros” se tornou tão famosa, que é possível encontrá-la facilmente por aí. Claro que nem tudo continua com a garantia de preservação. Aqui para nós, sabe aqueloutra sentença conhecida que proferiste “o petróleo é nosso”? Preciso dizer que não é mais bem assim. É que alguém nos contrariou. Sinto por ter te falado isso, mas nem tudo são flores por aqui. Não conta para o Mário, viu? Se não ele vai chamar isso aqui de Brasiléia desvairada, como fizera lá em Sampa, quando os modernistas chegaram. A propósito, na maioria dos livros didáticos de Literatura, Amigo, tu não és considerado como pertencente à Estética modernista de 1922. Referem-se a ti como um “Pré-modernista”. Esquecem que praticamente foste tu quem fundou a produção de livros no País. Não pense que esquecemos daquele manifesto, tão bem escrito para o Jornal “O Estado”, que fez com que reconhecessem teu dom nas letras. Não foi a partir dali que começou? Quanto a esse enquadramento em determinada Escola literária, não vá ligar para isso, não. Nessa mesma corrente de escritores em que te situam, está aquele teu amigo que só cruzara teu caminho, quando ele já estava esquecido e internado no hospital. Lembra do Autor de “Triste fim de Policarpo Quaresma”? Sei que lamentaste muito a sua morte tão precoce, mas hoje sabemos que o nome dele figura, assim como o teu, como um dos mais importantes da literatura brasileira, acredita? Que angústia ficarmos sabendo que o nosso Lima Barreto foi tão discriminado pela cor da pele! Não vou dizer que em nosso País não haja mais preconceito de cor, porque até Lei específica para coibir essa praga de sentimento já existe. E ainda bem que não é só para punir o preconceito de cor, mas o de raça, o de sexo; o de religião. Sim, eu sei vais dizer que ainda é pouco, ou talvez só um começo. Sei que dirá que precisaríamos de mais proteção, não só para as pessoas, mas para o nosso Meio ambiente. Dia desses, até lembrei tanto de ti. Foi por ocasião de notícias que correram aqui e mundo afora, sobre o aumento de queimadas em nossa Amazônia. A lembrança daquele episódio dos “Urupês” foi fatal. Queria que estivesse aqui para escrever algo a respeito. Ninguém como tu para se manifestar melhor na defesa do que é nosso.

Bem, eu queria verdadeiramente poder te falar mais, mas é que a velocidade das coisas e da vida agora são tão diferentes, sabe? Tão maiores, que parece estarmos vivendo numa nova engrenagem, em que o destino é feito todo dia e refeito ao amanhecer. Saudade daquele tempo em que o verde predominava sobre as edificações; o impresso sobre o digital. As histórias eram mais contadas e cantadas. Reuníamo-nos no Sítio e ouvíamos teus contos. Tantos olhinhos que se punham ao redor dos tipos que tu criaste, às vezes com sobressalto de admiração ou paixão; outras vezes, espantados, como os meus, ao ouvir o nome da Cuca. Mas de uma forma ou de outra, tudo estava no seu lugar e era tudo tão certo.

Vou ter de encerrar essa conversa camarada, meu amigo, mas prometo que falarei com o pessoal que, assim como eu, prezou do teu legado, para preservar o máximo possível as tantas maravilhas que tua força criativa fez brotar.

Um fraterno e saudoso abraço!

Paulino

Recife, 8 de setembro de 2019

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12 respostas

  1. Parabéns Parabéns Paulino, carta bonita e repleta de atualidades, porque Monteiro Lobato é eterno.

    1. Paulino, parabéns.
      Carta de verdade. Atualizando nosso querido Escritor sobre como andam as coisas por aqui.
      Também contei a ele que o “nosso petróleo” nosso já não é faz tempo.
      Excelente ideia atualizar sobre o Meio Ambiente. Adorei!

  2. Paulino, realmente encantada com sua carta. Sim, sabe, sei que terias muito mais a dizer, deu para perceber nas entrelinhas a mistura de recordações boas e registros, entre desabafos engasgados de quem anda perdendo muito por aqui. Parabéns, Paulino!

    1. Obrigado, Taciana!
      Verdade. Monteiro sempre tem mais a explorar. Obrigado e parabéns a você também!

  3. Paulino, talvez de nada sirva que eu analise um por um os parágrafos de sua linda carta, outras pessoas que me antecederam já o fizeram, o que eu poderia dizer a mais sobre o texto que escreveu e que trouxe Monteiro Lobato para a roda de assuntos tao atuais, de uma forma tão terna, tão recheada de lembranças da sagrada memória da infância. Se lhe puder dizer alguma coisa mais acerca do seu pendor para a escrita é isto, você é dotado de um modo simples e ameno de escrever que nos toma pela mão e nos leva para o encantado mundo dos sonhos. Parabéns, Escritor.
    Edna Alcântara, Condessa de ***

  4. Prezado Paulino, a sua carta a Monteiro Lobato me fez imaginá-los, você e ele, em um bate-papo muito íntimo. Talvez, pai e filho; decerto, um tio muito querido; indubitavelmente, um ídolo. De fato, você fez muito bem em dizer a ele sobre a sua importância para o movimento modernista, apesar de muitos o considerarem um pré-modernista. Conversas entre amigos, é nisso que dá! Sem protocolos! Um abraço. Luciene Aguiar

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