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Carta de Bernadete Bruto a Monteiro Lobato

COLETÂNEA DE MEMÓRIAS CARTAS A MONTEIRO LOBATO

Querido Monteiro Lobato

Gostaria que conhecesse a história de como você entrou na vida de uma menina por volta dos anos sessenta, e das mudanças que provocou em sua visão de mundo.

Não sei o que foi fazer naquele dia por lá. Aquele cômodo, no final de uma fileira de quartos da imensa casa, era uma espécie de guarda tralhas. E um lugar cheio de cacarecos sempre tem algo interessante para uma criança. Na parede do lado direito da entrada do quarto havia duas estantes formando um L na quina. Nelas, um amontoado de livros de estudo, romances, um dicionário de latim, cadernos escolares, coleções e revistas, guardados de forma desordenada. Foi lá que ela achou aquele livro grosso. Chamou sua atenção porque era de capa amarela com um rosto grande de uma menina, cabelos divididos de cada lado amarrados com lacinhos vermelhos. O rosto desenhado de preto ocupava metade dela e parte da contracapa formando um quadro quando aberto. Um pequeno peixe vestido de fraque na beirada estava perto da menina quase caindo para trás. Outro ser minúsculo, no alto da contracapa, correndo assustado.

Folheou o livro, muito mais grosso dos que ela costumava ler, ele ainda vinha com alguns desenhos interessantes. O título logo aguçou a curiosidade da menina: Reinações de Narizinho. Que nome estranho! Ela perguntou a um dos mais velhos, que explicou seu significado: brincadeiras! Pronto. Não precisava de mais nada para se interessar por sua leitura. De quem era o livro? Ela nunca soube… Em casa convivendo com muitos irmãos, não se pedia licença. Se estava ali, no quarto das tranqueiras, era de uso comum. Não precisava pedir autorização. Pegou o livro e, ali mesmo, começou a leitura. A história se passava num sítio, onde uma menina, de nariz arrebitado, chamada Lúcia, apelidada de Narizinho, morava com sua avó Dona Benta, uma velha de mais de sessenta anos, carinhosa e contadora de histórias. Com elas morava Tia Nastácia, preta velha que preparava deliciosos quitutes, criadora da boneca de pano Emília e do Visconde Sabugosa, feito de espiga de milho. Também chegou ao Sítio, vindo da cidade para passar as férias, outro neto de Dona Benta, Pedrinho, primo de Narizinho. Juntos entrariam em muitas aventuras.

Com a leitura surgiram muitas histórias, outros personagens vindos a integrar ou visitar o Sitio do Pica-Pau Amarelo, fora os já citados. O porquinho Rabicó, o príncipe escamado, Dona Aranha, a costureira das fadas, a Cuca. A menina achou graça na boneca Emília, que depois de tomar a pílula de Doutor Caramujo, passa a dizer tudo que lhe vem à cabeça. Sobre o Visconde de Sabugosa, nota que ele parece um professor, pois explica tudo bem detalhadamente. O porquinho Rabicó, Pedrinho e Narizinho o transformaram em Marquês e ainda o casaram com Emília que recebeu o titulo de Marquesa de Rabicó!

Algumas das histórias, a menina nunca tinha lido. Foram as que mais gostou! Outras, já conhecidas, descobriu quem escreveu. Dois homens de nomes diferentes chamados Esopo e La Fontaine. Os personagens conhecidos que visitaram o sítio foram: Dona Carochinha, Cinderela, Branca de Neve, Pequeno Polegar, Gato de Botas, Gato Félix, Peter Pan. Somente o Burro Falante passou a morar no Sítio.

Assim como Pedrinho, a menina estava em férias naquele momento, com todo tempo do mundo para a leitura. Ele era muito melhor que os de conto de fadas! Não o largou mais. Como a menina era somente um pouco mais velha que Narizinho, parece que tinha de oito para nove anos, talvez por isso, uma identificação foi logo estabelecida.

Assim, toda vez que o livro era aberto, aquele quarto eclético transformava-se, instantaneamente, no próprio Sítio do Pica-Pau Amarelo! Bastava a leitura das histórias contadas por você, para o cômodo ganhar cor e vida aos olhos da menina. Parecia que os personagens saltavam do livro e pairavam ao seu redor. Tudo por sua causa, Monteiro Lobato!
Você lançou um encantamento especial naquelas férias. A cada capítulo ela foi entrando mais e mais na narrativa, sentindo-se a própria Narizinho. Até achava romântico seu casamento com o peixe! Um príncipe no Reino das Águas Claras! Ao mesmo tempo, sentia os empecilhos, por serem de mundos diferentes. Também percebeu como certo o divórcio de Emília do Marquês de Rabicó, Emília era uma Boneca Livre! Mas a parte que ela mais gostou foi a da explicação do Visconde de Sabugosa sobre a formação do petróleo. Tomou conhecimento de como se formava aquela riqueza natural, abundante em nossa terra, e que os americanos não queriam que nos tornássemos independentes financeiramente… Talvez, a partir daquela explicação, iniciasse certo desprezo pelos gringos, chegando até a fase adulta… Igualmente, por sua influência, surgiu o gosto de ler outras histórias, de aprofundar estudos sobre assuntos que lhe interessassem e leitura de livros mais grossos.

Foi com um pouco de tristeza, de saudade, que a menina terminou a leitura, ao mesmo tempo em que também acabavam suas férias. Igualmente ao final do livro, quando Pedrinho, meio choroso, foi embora do Sítio para retornar as aulas na cidade.

Não bastasse guardar suas histórias no coração, a menina (que também tinha um nariz arrebitado), hoje uma senhora, tão velha quanto a Dona Benta, fantasiou-se de Narizinho para viver um evento na Cultura Nordestina. O motivo era uma contação de histórias para alegrar outras crianças, relembrando a magia da sua narrativa, uma ideia de outra visionária como você, a Salete, no evento intitulado Abril de Monteiro Lobato.

Encarnando a Narizinho, ela reviveu o Sítio sob coordenação de Verinha (Emília), juntamente com Taciana (Tia Nastácia), Colly (Dona Benta), Adriano (Cuca) e Tio Ed (Visconde de Sabugosa), além das participações especiais de Dulce, Eugênia, Joyce, Rosita e João Natureza. Assim travestida, a senhora já se divertiu muito nos três últimos anos.

Por tudo isso, Monteiro Lobato, ela agradece. Você trouxe alegria e diversão no passado, no presente. Não importa o que a vida fez com você e se alguns não lhe valorizaram tanto! Acreditamos que um pouco de você continua vivo, cada vez que alguém lê ou ouve suas histórias. Aqui, na Cultura Nordestina, você tem um espaço muito especial, um mês inteiro! Para todos nós você é um eterno Destaque Literário!

Com imensa gratidão

Bernadete Bruto

Conheça a história da Cultura Nordestina

16 respostas

  1. Berna, estou muito feliz com a sua participação na coletânea de memórias Cartas a Monteiro Lobato, especialmente, por você ser parte integrante do projeto de resgate da memória deste autor, que marcou tão profundamente a vida do povo brasileiro, e por ter interpretado, tão bem, a personagem Narizinho, em todas as versões do Abril de Monteiro Lobato, desde 2016.

    1. Berna. Conhecer sua obra, conviver com suas múltiplas faces de artista e agora ler essa sua carta a Monteiro Lobato, suas inúmeras representações de personagens desse escritor da minha infância de sonhos e de possibilidades imaginativas, me enriquece ainda mais de confiança num futuro onde a imaginação, a criatividade e os sonhos jamais perderão espaço. Linda e verdadeira carta!!! Parabéns e muito obrigado!!!😘

    2. Berna. Sua carta é cheia de conteúdos do imaginário infantil. Conta com propriedade tudo que a obra de Monteiro Lobato representou e representa para todos nós:. Você passeia pelos personagens, explicando o que cada um representa dentro do todo. Por outro lado, aborda o conteúdo político do texto – questão do nosso petróleo, naquela época. Sai da narrativa das experiências enquanto criança e mostra a sua passagem adulta, interpretando Narizinho, por diversas vezes, mantendo viva a memória de Monteiro Lobato, hoje. Formidável. Revivi parte da minha história com a sua carta. Parabéns pela engenhosidade do texto. Parabéns para Cultura Nordestina que resgata a memória de um escritor de forma criativa e cheia de vida!!!

  2. Bernadete,
    Tua carta a este grande pensador, escritor que despertou as fantasias do mundo infantil em muitas crianças do teu tempo, mostra o quanto é necessário resgatar sua escrita para ajudar essa geração internet a sonhar, descansar e escrever…
    Junto a tua carta manda uma pergunta: como resgatar nossas crianças da escuridão luminosa que encandeia a mente, o coração e a alma??? Fazendo criar sonhos e utopias de um Mundo verdadeiramente Humano a ser criado!
    Com meu abraço
    Ivanilde

    1. Querida Berna,
      O que muito chama a atenção em sua carta a Lobato é a intertextualidade presente, levando-nos a tantas histórias e transformando em uma só. É com esse recurso que a sua carta nos guia e nos faz deleitar quando nos deixa um gostinho de ” quero mais”. Foi muito bom passear por todos os espaços descritos e coincidentes com os que me serviram para as brincadeiras de menina. Um abraço carinhoso. Luciene Aguiar

  3. Amei a narrativa do fundo do coração da escritora querida e muito iluminada, Bernadete Bruto. Vai enriquecer e valorizar mais ainda a coletânea. Pois todos os outros textos estão divinos.
    Parabéns a Berna e a Cultura Nordestina.

  4. Parabéns Bernadete, ótima carta. É como você descreve: os livros de Monteiro Lobato nos fizeram ingressar na linda fantasia do Sítio do Pica-pau Amarelo.

  5. Perfeita sua carta, Bernadete.
    Linda. Comovente. Carinhosa.
    Logo entendi sua identificação com Narizinho!
    Abraço

  6. Berna você é um sonho de escritora. Seu texto está perfeito. Parabéns!!!
    Abraço afetuoso de Suzana Cavalcanti.

  7. Uma carta de Narizinho para o Sítio. Berna, imaginei bem o local, o quarto, o livro e a capa, pois ela pareceu chamar a atenção de todas as crianças da época. Hoje, lendo sua descrição, lembrei da capa, tão marcante para nós naquela época. Não poderia deixar de ser emoção essa carta, não é? Beijos, querida. Carta linda, linda!

  8. Berna , que capacidade a sua de descrever minuciosamente os espaços daquela casa onde se passou essa estória que povoou a imaginação das crianças e que ainda influencia a criatividadede tantas outrasFiquei encantada com sua carta .As suas interpretações do texto de Monteiro Lobato , tenho certeza, tambem devem ter identificação com a de outras tantas pessoas
    Parabens

  9. Berna, que delícia ler sua carta a Monteiro Lobato! Fui transportada para a biblioteca da minha infância e Narizinho era companheira das aventuras imaginárias! Sua escrita é íntima e linda! Parabéns Berna!!!

  10. Bernadete, li sua carta e me senti também dentro do quarto de tralhas de sua casa, buscando coisas, simplesmente curiosando o que estava guardado. Tal como você, recebi respostas evasivas dos adultos quando perguntava alguma coisa, o que fazia com que mais ainda e interessasse pelo objeto de minha curiosidade. Parabéns, escritora, você consegue prender a atenção do leitor e o surpreender a cada linha.

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