APRESENTAÇÃO DO DESTAQUE LITERÁRIO DE JUNHO DA CULTURA NORDESTINA
Não sei até agora a razão pela qual fui escolhida pelo poeta Valmir Jordão para escrever uma pequena apresentação de sua poesia para o Projeto “Destaque Literário”, capitaneado pela Cultura Nordestina Letras & Artes. Mas, precisamos mesmo saber? Tenho mais é que agradecer a honraria de falar sobre um poeta que está em seu ofício faz mais de 40 anos, sendo amplamente reconhecido pelos seus pares e com um público atento ao que produz porque o admira. Se chamo a atenção para este aspecto é porque o desafio foi grande: não sou especialista em literatura e, nesse sentido, certamente outros nomes mais habilitados existiriam para serem alvo da atenção do Valmir. Mas, convite feito, desafio aceito, para felicidade de ambos!
Sim, apresentar o poeta Valmir Jordão é um desafio pois não se trata de um principiante – aliás a expressão “destaque literário” já põe a nu a ideia de trajetória, de obra consolidada em determinados meios culturais e de amplo reconhecimento. Pulemos, portanto, possíveis justificativas para uma fala sobre justa e merecida escolha para homenagem.
Recifense, nascido em 1961 – portanto, em uma década que marcou de forma trágica a nossa sociedade, com o Golpe Civil-Militar de 1964 e que perdurou (achávamos) até 1985, quando o país entrou em nova fase, inclusive no campo da produção artística e literária. Este contexto talvez contenha a raiz de sua inserção como ativista literário, performer, um poeta plural nas linguagens e estilos. Se pus logo acima a palavra “achávamos” entre parênteses é porque os acontecimentos recentes da política nacional insistem em nos dizer que nos últimos 35 anos parece termos vivido sob um véu que encobriu traços autoritários, antidemocratas, racistas, xenófobos, misóginos desta sociedade. Mas, com todo o peso deste céu cinzento, há a poesia e há, não menos importante assinalar, a poesia do Valmir Jordão.
De fato, chamo a atenção para esses pontos para marcar o quão importante, como espaço de elaboração, resistência e reexistência social, é a arte, especialmente a poesia. Tais espaços a que me refiro estiveram demasiadamente inseridos na vida deste poeta. Falo do Casarão 7, da Livro 7, do Beco da Fome, da sede do DCE/UFPE que a tantos sonhos abrigou relativos a um Estado Democrático de Direito e da Liberdade com a qual se conduz a vida pessoal, social, cultural, ou simplesmente a vida!
Valmir Jordão começa a participar dos movimentos literários em 1979 – ano emblemático para a reconquista da democracia – e foi em 1982 que publicou Sobre vivência, pela Pirata, já indiciando no título do livro a que estava vindo, com um gosto especial pelos efeitos de sentido das palavras quando em processo de escansão – porque, ao contrário do bordão do Macaco Simão, língua tem osso!
Pode-se ver, no processo de um desossar dos componentes das palavras, uma recomposição lúdica, um lego linguístico-discursivo de extrema beleza e eficácia do ponto de vista de abertura dos sentidos, como se pode observar, por exemplo, nos poemas Ana:
ana que ia
ana que ria
ana queria
anarquia!
E Mundo:
novo mundo
mundo.
sub mundo
mundo,
in mundo!
Ali no nome-título Sobre vivência, Valmir já assinava um certo modo de se constituir no poético, já que foi aparecendo pelas margens e nas margens se mantem por opção até hoje. Espaço de resistência pois tais elementos de contenção e delineamento de fronteiras se estreitam e se alargam, dependendo da força das águas da poesia…
Poeta plural, atado a um homem plural, multifacetado… Metamorfoseado com frequência a partir dos efeitos de seus escritos poéticos sobre si mesmo….. Assim também lemos a sua poesia a qual, em que pese essa movência entre identidades e estilos, mantem fidelidade no dizer o cosmos ao modo firme, irônico e cheio de humor, esse elemento subversivo desde priscas eras – o que marca de modo indelével a sua poética!
Antes de abordar mais especificamente a obra poética, recorto para uma melhor compreensão desta bela trajetória alguns dados de sua biobliografia. Trago especialmente os nomes de alguns amigos que fizeram junto com ele parte do grupo dos poetas boêmios. Entre eles, destaco o Erickson Luna, Francisco Espinhara, Jorge Lopes, Hector Pellizzi, Heloísa Bandeira e Lara. É digna de menção a sua participação no Movimento de Escritores Independentes de Pernambuco (MEIPE), bem como as colaborações em variados fanzines que circularam no Recife, a partir da década de 1980. Dentre eles, cito alguns: Balaio de Gato, Caos, Lítero Pessimista, Folha ao Vento, De Cara com A Poesia e Poesia Descalça. Já nos anos 1990, fez parte de diversos recitais no Espaço Antropófago com Ivan Maia, Marta Braga, Miró, Sílvio Romero, Samuca e Jomard Muniz de Brito, dentre outros.
Digna de menção especial foi a sua participação como um dos organizadores das Coletâneas de Poesia Marginal Recife I, II, III, IV e V, além do POESIA NA PRAÇA, recital itinerante pelos bairros do Recife, com participação de 50 poetas, apoiado pela Fundação de Cultura da Cidade do Recife, no período de 2001/2002. Sua pluralidade vai além da literatura e alcança o cinema com participação no filme Ninguém me Ama, Ninguém me Quer, Ninguém me Chama de Baudelaire, de Diego Mello e Pedro Saldanha.
Mas voltemos à sua poética (como ela diz, o que provoca, de quais camadas de sentido se reveste), que é de fato o que interessa a um poeta: ser lido, ser ouvido, tocar no coração, na alma de outrem…Fazer gestos de comunhão…Ser empático com mulheres e homens; crianças, jovens e velhos; pessoas que amam, sofrem, desejam, brincam, se doam, são alegres, melancólicas; enfim, ser alimento para as vidas que fazem o cosmos cheio de mistérios.
O Valmir Jordão, nestes mais de 40 anos de ofício ininterrupto no mundo da poesia, muito produziu com uma contundência feroz na criticidade das desigualdades sociais. Tudo, porém, com leveza, humor, com as iscas de aproximação e não com chutes para afastamento de possíveis leitores. Eis um exemplo de contundência e leveza a um só tempo contido no final do poema Renga urbana:
(…)
Coca para os ricos
Cola para os pobres
Coca-Cola é isso aí.
Ou no poema Paradigma:
em época de
evasão escolar –
a que classe falar?
Vários autores já se dedicaram aos estudos do riso, do humor na literatura e a sua função transgressora, de resistência política. O russo Mikhail Bakhtin, ao estudar a obra de Rabelais, o fez com maestria, Mas não custa lembrar o nome de um outro poeta, grande poeta, a se dedicar ao cruzamento entre o riso e o político. Falo de Charles Baudelaire que, em 1885, escreveu um pequeno ensaio intitulado Sobre a essência do riso. Para ele, as causas do risível não são lógicas, nem racionais. Mas, bem o sabemos, levam a pensar, a refletir sobre as coisas do mundo. As que são apreensíveis e inapreensíveis também. E o poeta Valmir é assim, conforme podemos verificar no poema Mundo:
novo mundo
mundo.
sub mundo
mundo,
in mundo!
Em um tempo em que a contemplação, o silêncio, a introspecção são artigos raros, a verborragia aparece como uma máxima do tipo: ocupar espaço é preciso. Mas há o poeta Valmir a desmontar tal construção discursiva em Dos discursos:
a língua as vezes é fosso –
fala muito e atola-se
dos pés ao pescoço.
O político, não nos esqueçamos, também se reveste de lirismo…. Como não se deixar enlevar por esses versos?
Tropecei, caí na rua,
ao tentar pegar,
com as mãos, a lua.
Ou esses cá:
o rio corre –
as árvores curvam-se
o outono passa…
E o que dizer de suas já bem famosas “rengas”. Há para quase tudo: renga urbana, histórica, comportamental; e essa que apresento abaixo, a Renga política:
cosmopolita
sinto algo de podre –
e muito ruim, entre
Recife e Berlim.
história do Brasil II
nosso problema não é a democracia.
quem sempre nos vampiriza –
são as oligarquias.
da questão política
o coletivo passou –
e me queimou
na parada.
direitos civis
é pau , é pau , pau –
reza a cartilha
neo liberal.
desengano
em nosso país –
a esperança tornou-se
um grilo verde.
E como é fundamental saber dos enraizamentos de aldeia para que bem se fale do universal do qual faz parte, como deixar escapar como uma bela apresentação do que é capaz de nos fazer sentir, lembrar, pensar sobre a nossa cidade (a cidade do Recife), esse poema Ah Recife. Com ele, ressignificamos a palavra memória para que ela explicite, de modo atópico e acrônico, como mnemosyne se trasmuda, como o fio da história se impõe para nos inscrever no campo do humano. É esse fio que dá à memória ressignificada leveza, graça, ginga, só possíveis quando pensada no interior dos movimentos. É esse fio também que vai portar força, potência, abissalidade ao deslizar nos dias. Eis o poema:
Dizem os bardos que uma cidade
é feita
de homens,
com várias mãos
e
o sentimento do mundo.
Assim Recife nasceu no cais
de um azul marinho e celestial,
onde suas artérias evocam:
Aurora, Saudade, Concórdia,
Soledade,
União, Prazeres, Alegria e Glória.
Mas nos deixa no chão,
atolados na lama
de sua indiferença aluviônica:
a ver navios com suas hordas
invasoras
e o Atlântico
como possibilidade
de saída…
E sem mais delongas, vamos aos livros deste poeta que já publicou 11 livros, além de diversas participações em coletâneas, CDs e outros meios de divulgação de poesia!
Valmir, Valmir, Valmir,
a tua poesia nos encanta e com ela ficaríamos horas a ouvi-la ou lê-la como o fazem os leitores deste blog. Mas tenho que encerrar esta apresentação e o faço dizendo que a tua poesia exige do leitor a capacidade de se deixar queimar por espessuras laváticas, imagens tecidas como brocado, ritmos dançantes, mas sem malabarismos ou hermetismos estéreis. Afinal, tens quer ser lido e pelos tantos a quem te entregas com paixão de poeta militante…
Virgínia Leal: analista de discurso, doutora em Semiótica pela USP/Université de Paris X; professora titular de linguística da UFPE; escritora.
Respostas de 6
Belíssima apresentação. Contribui bastante para que se leia melhor este importante poeta que é o Valmir Jordão.
Agradeço a mestra Virginia Leal, por esta honrosa, generosa e singela apresentação nesta homenagem que a Cultura Nordestina Letras & Artes me presta através do Destaque Literário no mês de junho de 2020.
Gratidão a Bernadete Bruto, Eugênia Menezes, Taciana Valença e Salete Rego Barros e equipe, por toda gentileza e consideração com o meu trabalho.
No mais, vamos interagir com outros artistas, amigos, leitores e webnavegantes nessa jornada poética
com a energia de superar o tempo de isolamento social, os miasmas da pandemia, e do obscurantismo fascista no país e recarregar a alegria junina que invade-nos durante esta festiva e deliciosa e barulhenta época dos nossos queridos santos populares.
Saudações poéticas,
saúde, letras e luta.
Valmir Jordão
Agradeço a mestra Virginia Leal, por esta honrosa, generosa e singela apresentação nesta homenagem que a Cultura Nordestina Letras & Artes me presta através do Destaque Literário no mês de junho de 2020.
Gratidão a Bernadete Bruto, Eugênia Menezes, Taciana Valença e Salete Rego Barros e equipe, por toda gentileza e consideração com o meu trabalho.
No mais, vamos interagir com outros artistas, amigos, leitores e webnavegantes nessa jornada poética
com a energia de superar o tempo de isolamento social, os miasmas da pandemia, e do obscurantismo fascista no país e recarregar a alegria junina que invade-nos durante esta festiva, iluminada, deliciosa e barulhenta época dos nossos queridos santos populares.
Saudações poéticas,
saúde, letras e luta.
Valmir Jordão
A poesia de Valmir Jordão merece o destaque da Cultura Nordestina e a bela apresentação de Virgínia Leal. Aqui deixo minha homenagem e aplausos.
Valmir Jordão, uma voz poética muito necessária.
Sou muito fã de Valmir Jordão desde a primeira vez que vi recitar poemas nos encontros de rodas poéticas (Saraus), organizados por poetas “marginais”, como é chamada e rotulada a nossa poesia contemporânea “Poesia Marginal”, sou suspeito de falar, porque, além de fã, sou amigo de Valmir Jordão, só tenho a desejar que sua mão siga escrevendo suas inspirações e pirações, para nos alegrar e nos encher de emoções, forte abraço virtual!!! Walgrene Agra 03/08/2020.