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O churrasco e a barata, por Bruna Estima Borba*

QUARENTENA CULTURAL DA CULTURA NORDESTINA

Os problemas dos outros costumam nos causar consternação. Contudo, com o passar do tempo impõe-se o senso comum: você não se sente responsável por uma situação que não causou e tampouco pode solucionar. A contingência horrorosa que inicialmente estarrece se transforma em realidade banalizada. Os envolvidos no drama se metamorfoseiam em estorvos. A situação foi retratada por Kafka em a Metamorfose: a família inicialmente compassiva com a mutação em barata de um de seus membros se acomoda à situação infame. O final, todos conhecem: após sua morte os parentes saem em um passeio aliviado e comemorativo, ainda que velado, do desfecho. Mais que contar uma história fantástica, Kafka quis retratar como pensa e se comporta a humanidade, como ela é cruel em seu conformismo com a inevitável dor do próximo.

Passamos por um problema semelhante, estamos envolvidos em uma questão que não causamos e tampouco podemos resolver. Alguns serão atingidos diretamente, transformando-se não em baratas, mas em moribundos. Estamos limitados a aderir às medidas prescritas, a adotar providências adequadas assim como Grete, a irmã de Gregor Samsa, o alimentava jogando frutas pela fresta da porta. Mais que isso não se exige, afinal o vírus – especificamente o COVID-19 – não é culpa minha, muito menos dos médicos, nem dos governantes, nem mesmo da China e tampouco podemos nenhum de nós extingui-lo.

Ao me deparar com a notícia de que em nove de maio de 2020 algumas autoridades, entre elas a máxima do País, se encontrarão para um churrasco, não pude deixar de associar o evento ao passeio aliviado da família Samsa. Por que carregar culpas vãs? Por que não aliviar o peso deste embaraço?

Contudo, este senso comum da humanidade gera um desconforto íntimo em todos nós. Ainda que fiquemos em dúvida se nos comportaríamos de modo distinto, cada leitor de A Metamorfose termina o livro sentindo um profundo mal-estar, pedindo sinceramente a Deus não acordar na próxima manhã transmutado em barata e, se isso ocorrer, não pertencer àquela família. Enfim, não depender do senso comum da humanidade. Gostaríamos que ela fosse diferente do que somos, como já recomendou Kant e seu imperativo categórico: aja como se sua conduta fosse se transformar em uma regra universal. Pena que esse churrasco vem nos provar que não. Somos exatamente como denunciou Kakfa. Tanto os que comemoram aliviados quanto nós que os contemplamos impassíveis. Deus tenha piedade de nós.

* Professora universitária com doutorado em Direito, contista premiada pela Academia Pernambucana de Letras. Autora de “Tempo” e “Vivendo as circunstâncias”, publicados pela Novoestilo Edições do Autor. No prelo: “O Edifício Estrela”. Associada à LETRART – Rede de Associados Letras & Artes.

https://www.culturanordestina.com.br

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Uma resposta

  1. Bruna, você é a feiticeira das palavras, que transforma fatos de um cotidiano que nos enoja, numa obra de arte. Parabéns!

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