Crianças de férias. Linda e excepcional tarde ensolarada de junho. O Sítio da Trindade já estava todo enfeitado desde o dia de Santo Antonio e agora, faltando só dois ou três para o São João, era convidativo para um passeinho entre as brincadeiras armadas sob suas bandeiras coloridas, tudo bem típico da época festiva. A meninada se animou ao convite feito e com roupas das danças juninas dos colégios mais chapéu de palha para o rapazinho de 11 anos, maria-chiquinha prendendo o cabelo crescido da mocinha faceira de nove anos e chapéu de couro tipo vaqueiro no esperto caçula de três anos, com um bigodinho de carvão, formamos um grupo animado com a ajuda de Ilka, a secretária do momento.
Dona Virgínia, minha sogra, foi a primeira a ficar pronta e, enquanto caminhávamos todos para lá, disparou um relato repetido das festas famosas da Usina Leão Utinga, em Alagoas, onde crescera, casara e procriara. Evocava as apresentações da Chegança, do Bumba meu Boi, do Fandango, do Reisado e principalmente do Guerreiro, o mais bonito de todos, com seus enfeites de espelhos e fitas. Gostava de dançar o forró tocado com zabumba e sanfoneiros contratados pelos promotores da festa, os donos da Usina, Sinhôzinho Leão e Dona Lolita, que gostavam de passear formosos e empertigados entre a multidão, trabalhadores das suas propriedades ou de outras localidades. A música só parava para a queima de fogos, lindos e coloridos, à meia noite.
Chegamos cedo ao Sítio, que ainda abria suas barraquinhas com comidas bem variadas e típicas, mas as crianças logo descobriram Seu Americano, o pipoqueiro conhecido das tardes da rua Bento de Loyola, Casa Amarela, onde morávamos, a 200 metros de lá. A familiaridade serviu para “desarnar” os ainda comportados e tímidos visitantes do folguedo. As ofertas posteriores não tiveram o mesmo entusiasmo: caldo-de-cana com pão- doce, pirulito, algodão-doce feito no carrinho-de-mão com fogo e bacia de metal (o dono deixava as crianças girarem a manivela), castanha confeitada, milho cozido metido num caldeirão gigante, milho assado num fogareiro de lata recortada, amendoim cozido ou torrado, farinha de amendoim enrolada em papel em forma de cone (essa eu quis), bombons coloridos e picolé no palito escondido numa caixinha de madeira que o vendedor levava na cabeça.
A maçã-do-amor, colorida e chamativa era uma novidade que eu não conhecia ainda e que arrisquei sozinha: decepção. Guloseima melada, difícil de morder; contraste muito grande entre o doce caramelizado petrificado e o azedo da maçã, que o paladar rejeita. Pé-de-moleque fatiado, canjica no copinho, munguzá cheiroso de canela, arroz doce, bolo de milho amarelinho, tapioca, bolo de macaxeira, bolo de mandioca, pamonha, tudo tinha em casa, especialmente feitos por Dona Virgínia com receitas autênticas, em preparo para o dia 23, véspera de São João e aniversário da princesa da família: a filha Flávia faria 10 anos. Valia a pena aguardar.
Entre os brinquedos, o desejo era andar nos carrinhos de autopista. Ainda estava fechado e só abriria depois das 6 horas. Era necessário a criança ser acompanhada por um adulto. Resolvemos pegar o trem-fantasma, que nos dava sustos e permitia que gritássemos a todo pulmão a cada monstro que nos ameaçava no caminho cheio de reviravoltas e sacolejos.
Atração maior foi o Lindi-Lup, arremedo de montanha russa de madeira com banquinhos presos à esteira que rodava doidamente aos sopapos, tentando nos jogar para fora. O carrossel de cavalinhos, mais tranqüilo, agradou a todos. Em seguida os minúsculos carros de corrida enfileirados em carrossel foi um sucesso. O sabido caçula de 3 anos escolheu o mais bonito, um vermelho, e deu tantas voltas que só saiu quando a mãe avisou que iríamos para outro brinquedo.
Os jogos de argolas para acertar o brinde desejado, as bolas de pano para derrubar as latinhas empilhadas ao fundo do balcão, o tiro-ao-alvo com carteiras de cigarro, os patinhos-ao-alvo e a barraca de jogos de azar com vistosa roleta, tudo proibido para crianças. Só a pescaria se salvou com os peixinhos coloridos de chocolate; difíceis de acertar com a pontinha do anzol, mas valeu. As luzes das gambiarras acenderam. O autofalante começou a tocar música junina, só interrompendo para os reclames e propagandas ou para ativar o correio sentimental de recados muito engraçados, mas, às vezes, ininteligíveis ou cifrados.
No último brinquedo, só não entrou Dona Virgínia: a Casa dos Loucos. Era uma grande caixa de madeira contendo, em seu interior, ao meio, um banco para umas 12 pessoas sentadas, que deveriam se segurar em um ferro que a atravessava de canto a canto. A porta se fechava e as luzes apagavam. Música alta e um barulho ensurdecedor. De repente a caixa começava a girar forte, com todo mundo dentro. Gritos apavorantes e o ferro de segurar era a única coisa que salvava a todos. Pavor! Sensação do mundo girando dos pés à cabeça e para todos os lados. Parava tudo de repente com um sacolejo final. Todos saíam correndo feito zumbis pela porta estreita da salvação.
Ufa! Na direção que antes estava Seu Americano, lemos o cartaz num tripé de ferro que anunciava: “Imperdível! JANETE A MULHER GORILA”. A observação dizia: “Só para adultos”. Dona Virgínia expressou curiosidade e desconhecimento do que poderia ser. Resolvemos, eu e ela, assistir. A primeira sessão estava para começar e, comprados os bilhetes, entramos, pela cortina recolhida a um lado, num recinto de luzes foscas que deixavam ver que não havia cadeiras e os espectadores deveriam ficar em pé. O salão era um cubículo onde não cabiam mais que umas 20 pessoas, todas de frente para um mini palco cerrado com cortinas baratas de selva primitiva; aguardávamos o show.
Um domador de circo vestido a caráter, com botas altas e chibata na mão, anunciou o espetáculo narrando que a linda JANETE fora injustamente presa e que estava ficando furiosa com a humilhante situação. As luzes focaram uma jovem mulher, de cabelos esvoaçantes e cacheados, olhos provocadores, vestida apenas com um pobre biquíni que mal se ajustava às suas formas sinuosas, algemada e acorrentada, dentro de uma jaula de ferro, tentando violentamente, com contorções de acrobata e com uivos lancinantes, se soltar das barras da prisão.
Suspense. A música de tambores e as luzes que piscavam ajudadas por fumaças coloridas começaram a nublar a cena e JANETE resistindo. Aos poucos a bela obtinha pêlos pretos pelo corpo, os braços se alongavam com garras imensas em seus dedos e uma formidável cabeça de GORILA, que abria sua bocarra mostrando dentes afiados, substituía totalmente a figura frágil da jovem encarcerada.
O formidável primata rompeu as algemas e as correntes, começando a abalar a estrutura da jaula de ferro na intenção de se libertar completamente. Os estalos do chicote do domador não a intimidavam e a GORILA já começava a sair da jaula.
Foi muito para Dona Virgínia! Cobrindo o rosto com mão trêmula, vedou seus olhos com a bolsinha inseparável e, apertando fortemente meu braço próximo, tentava me arrastar para fora do salão ao tempo que dizia com voz de choro quase de criança: “não quero ver, não quero ver”.
Rapidamente começando a andar de costas, atendi ao apelo, dirigindo-me com ela para a saída apertada, por onde diversas pessoas também saíam correndo e gritavam que a GORILA JANETE pulara para a platéia!
Já do lado de fora, tentei, preocupada, acalmar Dona Virgínia, passeando lentamente pelo parque e nos dirigindo para o ponto de Seu Americano, onde as crianças e a secretária Ilka novamente comiam pipocas. Perguntei a Dona Virgínia se finalmente queria comer alguma coisa.
Só aceitou um Guaraná Fratelli Vita.
A volta foi silenciosa. Todos cansados e com dificuldade de vencer os 200 metros que nos separavam de casa.
Uma sopa de feijão, feita por Dalva, nos aguardava com pãezinhos torrados com manteiga.
Elzelena Amorim é recifense, casada, mãe de três filhos e avó de cinco netos, formada em
História pela UFPE, Procuradora Federal aposentada, Advogada.
Respostas de 12
Que tarde linda tia! Coitada de D. Vírginia, ficoou traumatizada. Parece que estou vendo ela, uma pessoa linda! Beijos
Amei tudo ! Descrição maravilha de uma festinha junina descontraída e despretensiosa que marcou nossas vidas simples e felizes !
Tia Elzelena que belo e rico texto, sua maneira de narrar essa tarde movimentada me fez sorrir e no final não escondo, fiquei com pena de dna Virgínia, mas ainda assim valeu. São lembranças como essas que o São João nordestino é tão especial, é riquíssimo desde a forma de se vestir até sua culinária sem esquecer do jeito de se festejar com muita dança fogos e fumaça.
Que linda recordaçao D.Elzelena me fez passear pela minha infância e recordar tempos felizes e inocentes
Parabéns pela iniciativa
Linda descrição dos bons tempos de festa de São João com excelente narrativa de nossa tia Lena, a qual foi tão importante nas nossas infâncias, pois levar várias criança e muitas traquinas, no cinema ou nos clubes para carnaval, além de confeccionar todas as fantasias, não é para qualquer um. Tia Lena temos orgulho de você e todos te amamos muito🥰🥰🥰🥰🥰🥰🥰🥰🥰🥰
Elzelena… Você narra esse conto junino maravilhosamente bem.. . Me transporte para cada brinquedo… Situação… E parece que estou vendo de. Virginia… Amei! Parabéns. Colly Holanda
Muito bom o texto, parabéns
A Mulher Gorila estará para sempre no nosso imaginário.
Há alguns anos, no mesmo Sítio da Trindade, entrei na cabine para revê-la.
E o susto continua o mesmo, incrível!
Amei o texto! Como sempre, a senhora com ricas informações e uma narrativa gostosa para ser ler!! Parabéns pelo texto!!! 🥰🥰❤❤😘 beijos dos sobrinhos, Petruska, Eduardo, Nathalie e Melanie.
Aí que saudade me deu!!! Adorei reviver as Festas Juninas no Sítio da Trindade. Descrição perfeita, divertida, adorei. Parabéns, querida tia Lena.
Parabéns!! Texto maravilhoso!! Me levou para o São João da minha infância!!!
Madrinha, que coisa linda. É isso mesmo tal e qual você descreveu. Esse é o verdadeiro são João! Senti os cheiros, os gostos e vi tudo, tudinho lendo esse texto prá lá de divertido !
Um beijo minha linda. (Queremos mais !)
Amei sua história parabéns que Deus te ilumine