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Maria de Fátima Santos Alves

Maria de Fátima

Fome – fruto da desigualdade social

                                         “O fenômeno da fome não é consequência

                                          da superpopulação ou decorrente de questões

                                          climáticas ou raciais,mas um flagelo construído

                                          pelos homens em suas opções político-econômicas.”

                                                              (Josué de Castro)

 

Fome de justiça, fome de fé, fome de paz, fome de conhecimento, fome de emprego, fome de respeito aos meus direitos enquanto cidadão, fome de amor… São falas de pessoas, às quais indaguei sobre o tema da antologia – Você tem fome de Quê?

A reflexão sobre o assunto me fez voltar aos desafios enfrentados por meus pais: um jovem casal de analfabetos, vindos do sertão paraibano em busca da sobrevivência em Vitória de Santo Antão.

Como a primeira dos 14 filhos (os dois primeiros nascidos em Soledade-PB), vivenciei as dificuldades do cotidiano familiar, iniciando uma nova vida. Somos o milagre da coragem e determinação de Valdemar e Zulmira, no grande desafio de alimentar e educar os 11 filhos que sobreviveram.

Mais tarde, exercendo a docência no Ensino Fundamental e Médio do Colégio Nossa Senhora da Graça, desenvolvi com grupos de estudos, pesquisas sobre a Insegurança Alimentar em seu estágio mais avassalador, a partir dos estudos de Josué de Castro, que havia conhecido nas aulas da amiga e professora Maria da Salete, na especialização em História de Pernambuco, da então Faculdade de Formação de Professores da Vitória de Santo Antão, início da minha paixão por esse grande brasileiro.

Josué provou cientificamente que a fome não é resultado do crescimento populacional e da escassez dos recursos naturais. Ele compreendeu a fome como resultado da exploração econômica, produto da dominação política, como consequência da injustiça e da desigualdade social.

A fome “não era só do mocambo, não era só do Recife, nem só do Brasil, nem só do continente sul-americano. Era um problema mundial, continua sendo um drama universal… produto de fatores sociais, consequência de estruturas econômicas defeituosas…”, nas palavras de Josué.

Os brasileiros precisam conhecer Josué de Castro, desde os anos iniciais de estudo até o ensino superior.

Há milhares de anos, a humanidade é desafiada pela insegurança alimentar. Com os avanços das ciências, acreditou-se que seria superada, em razão do crescimento da produção alimentar. Infelizmente a esperada produtividade não promoveu uma justa distribuição, sendo o Brasil, um claro exemplo. Como explicar que um dos maiores produtores agrícolas do planeta, permita a existência da fome entre milhões de brasileiros, em pleno século XXI? O primeiro direito de um homem é não passar fome[1]. Os estudos de Josué inspiraram pessoas várias a participar desta luta, entre eles o sociólogo Herbert de Souza, o Betinho, que liderou a “Ação da Cidadania Contra a Fome, a Miséria e pela Vida”, e que também não deve ser esquecido, pois inspira muitos a continuar a resistência.

A Constituição brasileira, no capítulo dos Direitos Sociais, em seu art. 6º, determina que: “São direitos sociais a educação, a saúde, a alimentação, o trabalho, a moradia, o transporte, o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção à maternidade e à infância, a assistência aos desamparados na forma desta Constituição”. Portanto, caso fosse cumprido, não faria parte da nossa história a vergonha da insegurança alimentar em nenhum estágio.

De acordo com o 2º Inquérito Nacional sobre a Insegurança Alimentar no contexto da pandemia da Covi-19 em nosso país, 33 milhões de brasileiros passam fome atualmente, 14 milhões a mais em comparação com 2020, destacando que é desproporcionalmente maior entre mulheres, pessoas negras, habitantes de zonas rurais, especialmente das regiões Norte e Nordeste. Esse é o resultado da falta de políticas públicas de combate à fome, políticas estas que, entre 2004 e 2013, foram fundamentais para que o Brasil se tornasse uma referência mundial, mas que foram irresponsavelmente destruídas nos últimos anos.

No início do atual governo, foi recriado o Consea – Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional, o qual havia sido extinto em 2019. É um passo importante para que o Brasil reconstrua as ações para a garantia de um futuro sem a insegurança alimentar, sem a fome. Ainda vivenciaremos um longo tempo amargando as consequências dos desmandos recentes, da concentração de renda acelerada, da precariedade do trabalho, decisivos para que o Brasil voltasse ao mapa da fome.

Quando a consciência e a cidadania, que devem estar presentes em todos nós, se fortalecerem, certamente conheceremos um novo tempo, no qual as futuras gerações viverão uma vida plena, onde a justiça, a paz, o conhecimento, a igualdade de oportunidades, a igualdade social, estarão presentes. É utopia? É possível. Não quero mais conhecer Fabianos, Sinhás Vitória, Baleias, crianças sem nome[2].  Precisamos cultivar o esperançar. Sonho que as Carolinas de Jesus, sejam amadas e respeitadas. Que não mais sintam nenhum tipo de fome. Quero amar e cultivar o Amor Maior – O Divino, que transformará a humanidade. Assim, a nossa essência divina prevalecerá. Não mais sentiremos nenhum tipo de fome.

Esta é a minha singela homenagem a Josué de Castro e a todos e todas que cultivam o amor. O amor ao próximo, a tão decantada empatia. Que tenhamos a coragem, enquanto sociedade, de reconhecer a responsabilidade coletiva, e não mais permitirmos ou elegermos representantes de coisa nenhuma, exceto seus próprios interesses. Que a fome de poder seja desconstruída e excluída da política brasileira. Mais uma utopia? É possível. Sonhar é o começo para a busca de uma nova realidade. Viva o povo brasileiro, viva Josué de Castro, o médico pernambucano que, por meio do conhecimento científico, enfrentou os poderes constituídos e comprovou para a humanidade a verdade sobre a insegurança alimentar, a verdade tão negada sobre a fome.

 


Maria de Fátima dos Santos Alves

é professora com licenciatura em História, e pós-graduação em História de Pernambuco. Membro do Instituto Histórico e Geográfico da Vitória de Santo Antão – IHGVSA; Academia de Letras do Brasil-PE e da Academia Vitoriense de Letras, Artes e Ciência – AVLAC. Coautora do livro História da Vitória de Santo Antão.

 

[1] CASTRO, Josué de. Geografia da fome.

[2] Referências a personagens de Graciliano Ramos , no romance Vidas Secas.

4 respostas

  1. Fátima,como me orgulho de ter lhe encontrado como aluna e depois como uma amiga querida.Fiquei lisonjeada pela citação do meu nome no seu texto.Fui um simples reflexo dos meus mestres.Aproveito para agradecer em memória ao Mestre João Francisco da UFPE ter mostrado os caminhos do Josué de Castro.Grata pela sua generosidade.Parabéns!

  2. Chega doer ao refletir que essa problemática é antiga, e infelizmente, por tempo indeterminado. Gratidão por nos proporcionar através do seu olhar, e do Josué de Castro, e de tantas vivências… esse momento de leitura e reflexão. sou sua fã Jovenzinha!!!! Prof Fátima 📝💝

  3. Sim Fátima, que a fome de poder seja excluída da política brasileira, um desejo utópico , um desejo nosso, de quem se permite abrir o coração e ” ouvir com outros olhos ” aqueles que estão à margem dessa sociedade nossa, construída com fome de poder, essa avassaladora forma de estar em posição de comando em uma nação, qualquer nação, que o homem desenvolveu , uma forma absolutamente egoísta e abusiva que tem imperado no mundo em que compartilhamos a vida… e sim, também que continuemos sonhando com uma sociedade mais igualitária… se não sonharmos não moveremos as forças para a transformação necessária para que nosso coração possa estar em paz , precisamos continuar sonhando e lutando a boa luta de Josué de Castro , a luta dos apaixonados pela vida. E como disse Rolando Toro é de afeto que o mundo precisa. Obrigada por suas palavras reflexivas e encorajadoras.

    1. Minha gratidão, pelo comentário prezada Suzana Vieira. Por quase 30 anos exerci a docência na rede pública estadual em diferentes locais, Recife, Moreno, Vitória de Santo Antão e Pombos, acompanhando de perto as dificuldades vivenciadas por meus alunos e suas respectivas famílias; hoje aposentada continuo observando as lutas diárias, algumas vitórias, enfim, por esta razão continuo sonhando e defendendo ser fundamental resistirmos sempre. Muito obrigada por compartilhar também dos meus sonhos. Resistir sempre até o último suspiro.

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