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Guerra X Paz*, por Salete Rêgo Barros

óleo sobre tela de Pablo Picasso

Rússia: um país tradicionalmente privilegiado em matéria de cultura – na literatura, nas artes plásticas, na dramaturgia, na música e na dança, possuindo vários escritores consagrados na literatura universal. A revista “Prosa, verso e arte” destaca dez poetas de diferentes períodos, que tiveram relevância neste centro de revoluções históricas: Aleksandr Blok; Alexandr Pushkin; Anna Akhmátova; Boris Pasternak; Joseph Brodsky; Marina Tsvetaeva; Osip Mandelstam; Serguei Iessienin; Velimir Khlébnikov e Vladimir Maiakovski.

De Osip Mandelstam (1891-1938), poeta russo que morreu num campo de trânsito estalinista para prisioneiros, sem obituário ou sepultura: Inseparável do medo é a queda/ Medo é mesmo do vazio o sentimento./ Quem das alturas nos atira a pedra,/ Rejeitando ela o jugo do momento?/ E tu, com teus passos hirtos de monge,/ Mediste em tempos a nave empedrada:/ Calhaus e sonhos rudes – não está longe/ A sede de morte, a grandeza ansiada!/ Maldito sejas, gótico abrigo,/ Quem entra é pelo teto enganado,/ Na lareira não arde o lenho amigo./ Vivendo eternamente poucos haja,/ Mas, viver ao momento subjugado –/ Que terrível sorte e que frágil casa!

Em 1773, num orfanato de Moscou, um grupo de dança surgiu formado por crianças carentes e trabalhadores. Após o incêndio (1805), que destruiu o prédio do Teatro Petrovski, onde a companhia se apresentava, o grupo migra para Teatro Arbaf até que, em 1824, uma sede própria é construída no local do antigo prédio incendiado. Esta é a atual sede do Teatro Bolshoi. O prédio foi tombado pela ONU como Patrimônio arquitetônico e cultural da humanidade.

O balé Bolshoi tornou-se referência mundial. Sua produção é de quatro espetáculos por mês, entre balés e óperas. Em Joinville-SC foi aberta a Escola do Teatro Bolshoi com a proposta de formar artistas cidadãos com os mesmos ideais que deram origem à Escola Coreográfica de Moscou em 1773, proporcionando desenvolvimento cultural às crianças das camadas mais carentes da sociedade.

Guerra e paz, do escritor russo Liev Tolstói (1828-1910), foi publicado inicialmente no periódico Russkii Vestnik, entre 1865 e 1869. O romance histórico narra a marcha das tropas napoleônicas que invadem a Rússia, em 1812, e o impacto brutal desta invasão sobre toda a sociedade russa.

Ucrânia: país cuja cultura é representativa dos povos eslavos – danças típicas, folclore, trabalhos manuais. O Balé Nacional da Ucrânia é uma das principais companhias de dança do mundo. As flores são um importante símbolo de cultura do país, sendo tradicionalmente presenteadas em datas comemorativas. O país já sofreu grandes perdas econômicas e humanas, tanto no período soviético quanto no período nazista, quando foi duramente atingida por ataques alemães.

Poema “O último brinde”, da ucraniana Anna Akhmátova (1889-1966): Bebo à casa arruinada/ às dores de minha vida/ à solidão lado a lado/e a ti também eu bebo –/ aos lábios que me mentiram/ ao frio mortal nos olhos/ ao mundo rude e brutal/ e a Deus que não nos salvou.

Haia Pinkhasovna Lispector (Clarice Lispector), uma das escritoras mais importantes do século 20, nasceu na pequena aldeia de Tchetchelnik, na Ucrânia. Sua família migrou para o Brasil fugindo da Revolução Russa, em 1917, devido aos conflitos, à miséria e à perseguição antissemita que assolava o país. No entanto, a escritora se dizia pernambucana por ter vivido no Recife durante a infância e parte da adolescência.

O livro “A hora da estrela”, de sua autoria, levou o prêmio Jabuti de “melhor romance” em 1978, um ano após a sua morte. O texto foi adaptado para o cinema por Suzana Amaral, e o filme arrebatou 11 premiações em festivais nacionais e internacionais; entrou para a lista da ABRACCINE como um dos 100 melhores filmes brasileiros de todos os tempos. A migração como temática social é abordada por Clarice, através da protagonista Macabéa. A narrativa é “de um fracasso coletivo, de um fracasso de cidadãos e da sociedade” (SIMON, 2009, p.72). A seguir, um trecho do livro:

Se o leitor possui alguma riqueza e vida bem acomodada, sairá de si para ver como é às vezes o outro. Se é pobre, não estará me lendo porque ler-me é supérfluo para quem tem uma leve fome permanente. Faço aqui o papel de vossa válvula de escape e da vida massacrante da média burguesia. Bem sei que é assustador sair de si mesmo, mas tudo o que é novo assusta. Embora a moça anônima da história seja tão antiga que podia ser uma figura bíblica. Ela era subterrânea e nunca tinha tido floração. Minto: ela era capim.

O ucraniano bacharel em Direito Volodymyr Zelensky, de 44 anos, vem de família judaica vítima do holocausto. De estilo irreverente, criou um grupo com fortes críticas à velha política, produziu séries para a televisão, atuou em oito filmes e fez turnê pela Rússia e nações pós-soviéticas, durante alguns anos. Ironicamente, representava um presidente em “Servo do Povo”, programa de sátira política, criado e produzido por ele, onde um professor de história do ensino médio, grosseiro e revoltado, é inesperadamente eleito presidente da Ucrânia, após viralizar em um vídeo contra a corrupção.

Em 2019, a vida imita a arte e Zelensky é eleito presidente da Ucrânia aproveitando a onda contra a classe política vigente, que tomou conta de diversos países, entre eles, o Brasil.

Descontente com a corrupção e a economia em colapso, o povo ucraniano o elegeu em segundo turno com 73% dos votos. Em razão da invasão russa à Ucrânia, Zelensky, que via despencarem seus índices iniciais de aprovação, torna-se protagonista do conflito aos olhos do mundo, não mais como ator, comediante e presidente, mas como herói da resistência contra a invasão russa.

Em nome da paz e do progresso, loucos conduzem cegos à morte e à mutilação de corpos e almas. Nobres motivos agora justificam a invasão do território ucraniano e a condenação à perda de sua soberania, o que torna ilegítima essa guerra de agressão, por ferir os princípios da Carta das Nações Unidas, tratado estabelecido em 1945 para zelar pela manutenção da paz e da segurança internacional. Seus membros permanentes do Conselho de Segurança são: Federação Russa, República Popular da China, Reino Unido, França e Estados Unidos da América.

Putin contava com a tomada da capital Kiev em 72 horas, e já vão mais de 456 horas de conflito, sanções e bloqueios econômicos do Ocidente contra a cúpula do Kremlin, integrantes de partidos, executivos de estatais e investidores bilionários. As medidas envolvem restrições financeiras e de viagens, congelamento de ativos e bens, veto à negociação comercial e prestação de serviços. Visam o enfraquecimento econômico do país, além do julgamento público mundial.

Canais alternativos dão conta de que os ucranianos têm forte ligação com as forças neonazistas e Putin com as neofascistas. As informações confundem a compreensão do cidadão comum que assiste, passivamente, às notícias que chegam da Europa e dos Estados Unidos. Concretamente, sabe-se quem invadiu quem em circunstâncias nebulosas, sob a alegação da necessidade de uma “Operação especial militar”, e que alvos civis estão sendo atingidos, matando crianças, mulheres e idosos, apesar de o governo russo afirmar que, apenas, os alvos militares são atacados.

Desde os primeiros registros de que se tem notícia, a humanidade tenta resolver seus conflitos através da violência, gerando mais violência. Apesar de já existirem provas convincentes de que o caminho da diplomacia é o mais adequado, se quisermos conviver em paz, o ser humano se recusa a estabelecer uma convivência pacífica duradoura, como se a violência fosse um fado inevitável do processo civilizatório, a ser continuamente superado. Diante de tamanha incapacidade de amar, os mais sensíveis expressam, universalmente, toda a sua dor através da arte.

O massacre ocorrido na cidade basca de Guernica instiga o multiartista espanhol Pablo Picasso (1881-1973) a expressar a sua indignação em óleo sobre tela em 1937. A obra representa as terríveis consequências da guerra sob a luz de uma lâmpada elétrica, símbolo da modernidade e do progresso técnico, tornando-se uma declaração de guerra contra a guerra, um manifesto contra a violência e um símbolo do antimilitarismo e da luta por liberdade do ser humano.

Creio que os acontecimentos deste início de século – pandemia, guerras, crise política e desastres naturais – mostram claramente que a elevação do nível de consciência dos habitantes do planeta Terra é urgente, se não quisermos retroceder ao estágio inicial da barbárie. O que agora vemos é o desnudamento da miséria humana, em todas as suas formas, e o convencimento, cada vez maior, do que não mais convém à humanidade. Diante disso, é preciso acreditar que a tendência dos próximos anos seja a ressignificação da vida.

Carnaval de 2022. Premidos pela guerra contra a pandemia, o Carnaval oficial e os tradicionais desfiles das escolas de samba não são liberados no Brasil, dando passagem ao cenário da guerra informacional e à sua espetacularização nas telinhas, durante as 24 horas do dia.

Segundo Oleksii Reznikov (Twitter), ministro da Defesa da Ucrânia, o objetivo da Rússia era “quebrar a resistência do povo e do exército ucranianos”, começando com “uma ruptura de conexão” e “a disseminação maciça de mensagens falsas de que a liderança do país ucraniano aceitou desistir”.

Segundo Maria Zakharova (Facebook), porta-voz do Ministério do Exterior da Rússia, “A Rússia não começou a guerra, mas está terminando”. Ela coloca a invasão russa na Ucrânia em curso no contexto do conflito em Donbass, que já vem acontecendo desde 2014.

Um elemento antigo, agora requentado pela tecnologia da informação – as fake news –, nos deixa longe do entendimento do que realmente alimenta a invasão da Ucrânia pelo império russo. Apressadamente, as pessoas pendem para um lado, baseadas na enxurrada de informações tendenciosas que chegam, principalmente dos Estados Unidos – país tradicionalmente pronto a mediar conflitos exibindo a performance de salvador da pátria, apesar de a história ser testemunha da indiferença com que o império estadunidense age em relação à integridade territorial dos países que vêm se tornando alvo de sua cobiça, e da forma com que mantém a sua hegemonia por tantas décadas e a consolidação de suas zonas de influência, facilitadoras de transações comerciais e acesso às matérias primas.

Contabilizando o maior número de invasões territoriais e culturais no mundo, até hoje não se tem notícia de que os Estados Unidos tenha sofrido sanções e bloqueios por parte dos demais países, como os que agora surpreendem a Rússia. A partir daí, é aberto um novo precedente com capacidade para fazer qualquer país pensar duas vezes antes de invadir o território alheio.

O calendário já marca três semanas de dor e tristeza, especialmente para os que, agora, sabem exatamente o que não querem nunca mais para as suas vidas: vivenciar os horrores da guerra, até então uma realidade distante, conhecida através de livros e documentários pelos mais jovens.

Em nome de interesses inconfessáveis, vidas são interrompidas, o patrimônio público é depredado, alvos civis são bombardeados e sonhos juvenis são destroçados. E ao povo nada é perguntado. O autocrata manda e o povo obedece, obrigado a saciar desejos delirantes de dominação e poder sob o escudo “Missão de paz”. Muitos dos que estão nos campos de batalha, sequer entendem por quem e por que precisam matar e morrer.

As narrativas se sucedem numa batalha de justificativas que dividem opiniões, as mais diversas. Os desavisados não veem muito sentido neste blá-blá-blá, porque, para eles, ao lado dos poderosos sempre caminha a razão. As consequências devastadoras da guerra não fazem, sequer, cócegas, no arrependimento nem no remorso dos que defendem a ida de recrutas para o conflito armado em defesa da pátria e incentiva o voluntariado civil. Talvez as consequências das sanções e bloqueios econômicos, que atingem diretamente o mercado financeiro e a oligarquia russa, nos nervos e nas veias, além de penalizar o mundo globalizado com alta da inflação e desabastecimento, entre outras consequências indesejáveis, possam abalar o convencimento dos tiranos de todos os cantos do mundo.

Surfando na tragédia humanitária que levou, em dezenove dias, quase três milhões de ucranianos a atravessar as fronteiras do país em busca de refúgio, deixando para trás trabalho, casa e familiares homens entre 18 e 60 anos, o posicionamento oficial dos demais países é fundamental para que possa ser exercida pressão em bloco sobre a Rússia, aumentando a russofobia que se alastra feito rastilho de pólvora atingindo, não apenas as áreas de interesse econômico, mas também a sua cultura milenar, patrimônio da nação e não de um governo temporário, que agora se encontra em maus lençóis.

Diante das cobranças diplomáticas da ONU, alguns acham que devem exigir o mesmo dos cidadãos comuns, como se o conflito no leste europeu fosse, apenas, uma guerra de narrativas ou um divertido pastoril. Você é do cordão azul ou encarnado? Qual lado você prefere: Ucrânia ou Rússia? Outros acham, ainda, que devem demonizar a literatura russa, a música, a dança, a culinária e o esporte russo.

A questão não é de adesão a um ou outro lado, mas sim de um posicionamento em favor da paz, em quaisquer circunstâncias. Nada justifica o sacrifício de vidas e a destruição da riqueza das nações, por mais que um país alegue estar coberto de motivos para declarar guerra a outro. É importante destacar que invasões territoriais são fomentadas pela possibilidade de lucros e dividendos que o solo cobiçado possa vir a oferecer ao invasor, e pela conquista do poder. Isso é um retrocesso aos tempos pré-históricos, onde a barbárie era uma questão de sobrevivência com predominância do instinto animalesco. Dessa forma, o processo civilizatório aponta para trás e não para frente, como o esperado, do mesmo jeito que a má distribuição das riquezas aponta para o egoísmo e a estupidez humana, que deságua na desigualdade social geradora da violência.

Nada justifica que a cultura milenar de um povo seja destruída e que a ela sejam feitas restrições, como as que estamos assistindo nos últimos dezenove dias, em que o governo russo consolidou os ataques à Ucrânia por terra, céu e mar, ataques estes planejados, há muito tempo, sendo, porém, negados por Vladimir Putin, até o último instante.

É importante destacar que desde o século X, a então Rússia de Kiev vem se tornando uma das maiores potências mundiais. Sua tradição agrícola inclui a produção e exportação de grãos, e a cultural inclui culinária, arquitetura, música, dança, literatura, filosofia, esportes e comemorações festivas. Possui as maiores reservas de gás, carvão e petróleo. É o maior exportador de gás natural do mundo, e o segundo de petróleo. É completa insensatez reduzir todo esse patrimônio do povo russo ao descrédito, e colocá-lo na esteira da destruição.

Não bastasse a destruição da Ucrânia e as consequências funestas para as futuras gerações, a guerra ideológica e a das narrativas se intensificam no mundo inteiro – talvez esta seja a mais difícil de ser combatida, justamente por ser silenciosa. Aparentemente, não existe violência numa notícia falsa. No entanto, foi uma delas que desencadeou a guerra no Iraque, quando o então presidente Bush justificou a invasão do território iraquiano a partir da informação falsa de que Saddam Hussein possuía armas de destruição em massa. Mesmo após a mentira vir à tona, a guerra continuou e o seu efeito devastador permanece incalculável. Foram notícias falsas que levaram o até então político inexpressivo, Jair Bolsonaro, a se tornar presidente do Brasil em 2018. Mesmo após as mentiras virem à tona, o governo desastrado e inconsequente continua, e o seu efeito devastador também é incalculável.

* Publicado no livro Odara. Recife, 2022. Novoestilo Edições do Autor

 

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