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Clarice Lispector: da Ucrânia para a literatura brasileira, via Pernambuco, por Monsenhor Assis Rocha*

monsenhor assis rocha

Em julho de 1966, chegava eu a Afogados da Ingazeira, com 25 anos, para estagiar naquela sede diocesana – cerca de 400 km da Capital, no interior de Pernambuco – tendo em vista a ordenação sacerdotal.

Passei a ter como superior e orientador, o próprio Bispo, Dom Francisco Austregésilo, que já fora meu Reitor e professor no Seminário de Sobral, a quem eu sempre admirei e respeitei muito. Foi logo depositando confiança em mim, fazendo-me vice-diretor de um bom Colégio da Diocese, de 1º e 2º graus, até então dirigido por Religiosas Franciscanas e, a partir dali, por diretores indicados pelo Bispo. Tive a sorte de trabalhar com a super competente diretora, Dona Ione de Góes Barros, integrando a sua equipe de professores.

Dom Francisco me deu também a Direção Administrativa da Rádio Pajeú que já estava em seu 7º ano de existência, como pioneira em todo o sertão e me ofereceu uma casa da diocese, bem no centro da cidade, para transformá-la em um “Clube de Jovens de Afogados da Ingazeira”, o Club JAI, com jogos de mesa, músicas da jovem guarda, revezando com MPB, com hora marcada para iniciar e terminar, já que a energia termoelétrica faltava às 22 horas, com um rápido aviso dez minutos antes. Tempo suficiente para pararem os jogos, organizá-los e correr pra casa.

No início de 1967 o ano era novo para todas as atividades. A base já estava pronta para entrar em ação. Inexperiente, é claro, mas com muito gás e com muitos planos não só por conta do estágio, mas para lançar os alicerces de toda uma vida dali pra frente.

Apesar da importância que eu dava à preparação para ser Padre, não eram menos importantes as outras atividades que preenchiam o meu tempo e, uma delas, é claro, era o meu desempenho e interesse pela educação: no JAI, no Colégio e na Rádio Pajeú de Educação Popular.

À função de vice-diretor eu acumulava a de professor de certas matérias ou disciplinas importantíssimas para nossos alunos: Literatura Brasileira era uma delas. Não encontrando compêndios apropriados, sem recorrer à internet, bibliotecas ou a arquivos que me pudessem ajudar, logo em 1967 organizei um livreto, “manuscrito” por mim mesmo, pesquisado no que estivesse ao meu alcance na biblioteca do Bispo, do Pe. Antônio, Pároco da Catedral e nos meus “alfarrábios” pessoais, que eu ia formando ao longo do tempo e repassava para meus alunos. Tudo era de grande “novidade” para muitos deles.

Assim eu me expressei, falando-lhes sobre o Modernismo: “é o movimento artístico que se caracteriza pelo desprezo às correntes anteriores (medieval e clássica) e pela busca de novos caminhos artísticos e estéticos”. E acrescentava: “os primeiros movimentos modernistas no Brasil se fizeram através das artes plásticas em oposição a tudo o que vinha do passado e agitava a Europa”. Em seguida eu desfilei 22 escritores da Modernidade Brasileira (da 1ª à 3ª etapa) sobressaindo algumas escritoras: Cecília Meireles, Henriqueta Lisboa e Clarice Lispector, mesmo tendo falado depois sobre Lília Pereira da Silva, representando a Literatura e Arte Contemporâneas, dentre 09 outros escritores mencionados.

Escritora CLARICE LISPECTOR

É aqui que quero dedicar a parte mais especial da minha reflexão, dando sequência ao desfile que estou fazendo de “pensadores que sonharam com um Brasil melhor” agora sob o Nº IX: Clarice Lispector. Como é possível ter eu elencado mais de 30 “pensadores”, “sonhadores”, “literatos” há 54 anos, nem Padre eu era, e estar vivo para apreciar esta história, até com ex-aluna minha?

Sob a “Organização da LETRART – Recife” tenho em mãos a II Coletânea de Memórias, intitulada de “Cartas a Clarice Lispector”, assinadas por nomes a mim familiares, por ter vivido em Pernambuco por 40 anos: Quintella, Borba, Menezes, Gusmão, Japiassu, Rego Barros, Valença e, é claro, minha ex-aluna e querida amiga Fátima Brasileiro. Entre eles há até um “Estadunidense de Sobral” para não fugir à regra de que “cearense está por toda parte”. Eu que o diga.

Entre as minhas resumidas ‘anotações’ que eu chamei de ‘manuscritos’, para as 30 biografias, eu segui o mesmo esquema: vida, obras e apreciação. Não me envergonho de mostrar a minha limitada sabedoria. A Clarice nasceu aos 10 de dezembro de 1920, na Ucrânia. Filha de um casal judaico. Todos tiveram que fugir do país devido a perseguições aos judeus durante a guerra civil russa. Vieram para o Brasil, entrando por Maceió, quando Clarice tinha dois meses de idade. Depois foram para o Recife onde ela aprendeu a ler e escrever e já foi mostrando sua vocação para escritora. Integrou o Modernismo Brasileiro já na sua 3ª etapa, junto a Rubem Braga, Lúcio Cardoso e Fernando Sabino. Ressaltei-lhe as Obras até 1967, enquanto eu escrevia meus resumos: “Perto do Coração Selvagem” (1944). “O Lustre” (1946). “A Cidade Sitiada” (1949). “Alguns Contos” (1952). “Laços de Família” (1960). “A maçã no escuro” (1961). “A Paixão segundo G.H.” (1961 – sigla passível de vários significados). “A Legião estrangeira” (1964). “O Mistério do Coelho pensante” (1967).

Minha apreciação à época foi: “até aqui, citei estas obras, imaginando o tanto que ela seria capaz de produzir. Conteúdo e bagagem ela tinha de sobra. Casada com um Diplomata viajava pelo mundo em sua companhia. Poliglota, tradutora e com uma carreira literária pela frente”… 

Aos se aproximar do dia 10 de dezembro de 2020 e pelo ano de 2021 adentro, começou-se a falar de Clarice de uma maneira mais direcionada pela passagem dos 100 anos de seu nascimento, já que sua presença entre nós foi muito benfazeja. Cartas e mais cartas lhe foram direcionadas pelos seus mais diversos admiradores, estudiosos e escritores dos mais diversos pontos do país, sobretudo pernambucanos, que não se contiveram na ocultação de seus sentimentos, já que haviam bebido na fonte de seus conhecimentos e escritos que teriam de passá-los adiante. Eu, apesar de não ser escritor, por ter tido uma pálida passagem por sua vida, enquanto professor interiorano no sertão de Pernambuco e depois de ter visto uma ex-aluna minha – Fátima Brasileiro – tão belamente se referindo a ela, não me contive. Quis também eu usar este espaço que me é oferecido pelo meu amigo e colega, Professor Leunam, para opinar também sobre este centenário de alguém que também “pensou e agiu para tornar o Brasil melhor”.

Clarice morreu jovem ainda – um dia antes de completar 57 anos – aos 09 de dezembro de 1977 no Rio de Janeiro. Nos 10 anos de sua vida – entre a data que parei de escrever minhas anotações de Literatura Brasileira (1967) e a data de sua morte (1977) – ela ainda escreveu: “A Mulher que matou os Peixes” (1969). “Uma aprendizagem ou Livro dos Prazeres” (1969). “Felicidade de Clandestina” (1971). “Água Viva” (1973). “Imitação da Rosa” (1973). “A Via crucis do Corpo” (1974). “A vida íntima de Laura” (1974). “A Hora da Estrela” (1977). Com uma Bibliografia tão vasta é impossível resumi-la em poucas palavras. No entanto ouso indicar algumas frases: “eu sou antes, eu sou quase, eu sou nunca”. “A grandeza do mundo me encolhe”. “O verdadeiro pensamento parece sem autor”. “A vida é oblíqua e muito íntima… Venho da dor de viver”. 

 

Da série: Pensadores que sonharam com um Brasil melhor (IX)

*Mons. ASSIS ROCHA, de Bela Cruz, Mestre e Doutor em Comunicação Social, Articulista, Escritor

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