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Cícero Melo, por Virgínia Leal e José Luiz Mélo

Sempre que um de nossos familiares, colegas ou amigos morre, pensamos em Alberto da Cunha Melo e no denso “Canto dos Emigrantes”:
Com seus pássaros
ou a lembrança de seus pássaros,
com seus filhos
ou a lembrança de seus filhos,
com seu povo
ou a lembrança de seu povo,
todos emigram.
Pois é, o poeta alagoano, de União dos Palmares, Cícero Melo, emigrou… Fez a sua última viagem em direção ao azul abissal e absoluto do cosmos onde encontrará outros poetas – dentre eles, o conterrâneo Jorge de Lima. Enigmático em suas escolhas estilíticas. Ia das formas metrificadas e clássicas aos versos livres (ivres?). Um resultado de uma mente inquieta e magmática. Sim, mente cheia de lavas vindas lá do berço ocidental. Na mitologia, enraizou muitos de seus versos em belíssimos sonetos que ressignificam a nossa filogênese poética, conforme observamos neste poema, publicado em 2017, na “Pequena Antologia Poética”:
OS CAVALOS DA ALBA
Eu, guerreiro de um deus aqui banido,
Nesta cela de sonhos acidulada
Combato os dias vãos com rubra espada,
Cavalgando corcéis de aceso olvido.
Renasço sempre ao sul da madrugada
Meus cavalos de luz de um sol partido,
Quando a noite decai sem um gemido
Forjando do inimigo a face alada.
Guerreio sempre ao claro a fera esquiva,
Aquela cuja garra a morte imana
Em sal e sangue, sândalo e saliva.
Mas é de acontecer, enquanto se ama,
Que, guerreiro, me quede a adaga ativa,
Quando vibrante o coração me inflama.
Mas não apenas de retornos mitológicos vivia. Vejam que belíssimo soneto metalinguístico, ainda na mesma publicação, “ Pequena Antologia Poética”:
A TERCEIRA PELE
Procuro a carne da palavra adusta,
Aquela que insorvida se consome,
Aquela cujo selo cai à fronte
Das palavras irmãs e se incrusta
Nas pedras da razão, no verbo nômade,
No dedilhar de febres e de angústias,
No delírio senil da sombra rústica,
Longa noite de sal e medo insone.
Procuro a carne da palavra augusta,
Aquela que se eleve e se prolongue
Em mistério sutil, sedosa e onde
Repouse mar, celebração e bússola.
Procuro a carne da palavra morta
Que se aviva, me bate e me conforta.
Poeta dos, bons, foi um grande aventureiro no reino das palavras e das imagens, virando-as pelo avesso:
LIBITINA
Morrer é um descanso.
Sair da vida, um horror!
Não bastasse a generosidade de divulgar em sua página, nessa rede social, poemas de poetas que admirava, fossem famosos ou iniciantes, Cícero Melo dedicou a alguns deles poemas como este “Canção amiga”, escrito para a poeta luso-brasileira Maria de Lourdes Hortas. Aliás, uma das poetas preferidas em sua página – geralmente dividida entre postagens de cunho político, poemas de sua autoria, já publicados ou inéditos; e poemas de outros poetas, sempre possibilitando com novas imagens ilustrativas um interessante diálogo intersemiótico.
Eis o poema dedicado à Maria de Lourdes Hortas:
CANÇÃO DA AMIGA
Ninguém mais.
Só a tua fala.
À medida que a noite
vai te amando
(e te ama tudo,
o chapéu molhado,
o gato,
o verbo descalço,
o sapato tosado
a paisagem alada)
Estou te vendo
ó, Maria
ó, Lourdes
ó, Hortas,
vestida de aldeias!
(15 de março de 2021)
O traço de generosidade que o caracterizava enquanto poeta deve ser enaltecido, pois não é comum aos poetas divulgarem criações poéticas além de suas próprias ou, no máximo, de nomes consagrados ou já falecidos, caso de Jorge de Lima, mas também o fazia com iniciantes, menos conhecidos.
Diversos poemas foram levados à sua página, com propostas bem interessantes de ilustração, em geral situadas no campo da fotografia: Lourdes Nicácio, Iremar Marinho, Ângelo Monteiro, Lourdes Sarmento, Zé de Lara, João Francisco Lima Santos, Valmir Jordão….Foram tantas e tantos que seria extenso demais enumerá-los.
No entanto, não poderíamos fazer esta homenagem à sua poética, ou um agradecimento ao seu coração amigo, do modo como certamente ele apreciaria, sem trazer um poema que muito diz de seu posicionamento Ético/Estético sobre o nosso país e que deve ter uma ampla divulgação:
ENQUANTO O BRASIL AGORA
O jardim do passado é sempre escuro,
Mas fica verde quando lhe convém,
Amarelo limo nu o linho além
Ó desenhos sem cores do futuro!
Isto aqui é um soneto duro e vil.
Surdo punhal para matar o vento.
Um cavalo lambendo a noz do tempo.
Pois tudo é bosta agora no Brasil.
Penso pegar carona no corona.
Enterros estão caros, caixão raro.
O podre cemitério, uma sanfona.
Comer agora um ovo é prato caro.
E meu Brasil, meu Deus, agora é zona
Do macabro bordel do Bolsonaro!
{Recife, 09/04/2021}
Agradecemos à poeta Dione Barreto que nos enviou gentilmente estes dois poemas para que, nas palavras do poeta, roçássemos a sua visão sobre o Janus que nos acompanha tão de perto – vida e morte:
DECERTO NÃO MORRI
Decerto não morri, estou sonhando.
As vozes que não ouço, são da amada,
no meu leito de casa despejada,
neste bordel de luz, me desenhando.
Decerto não morri, estou libando,
o tempo que me resta despojada
a vida que vivi dentro do nada
e no nada que vivo vou andando.
Incertos passos, águas nebulosas,
em pássaros de vento decaído,
janelas dos sentidos e rotas rosas.
Não, não, eu não morri, estou sentado,
neste tempo de febre dividido
na textura sedosa do passado.
ENQUANTO O SOL DESOVA
Mas tudo mesmo se acaba:
o tempo dentro da vida,
o vinho dentro da taça.
É tudo assim como uma página
faminta na manhã:
as letras devoram
a traça.
Sem mais outros comentários, vamos ler Cícero Melo. Seus poemas estão, entre outras publicações, em “O Verbo Sitiado”, “Poemas da Escuridão” e “O Poema da Danação”. Inédito, o livro “O leitor de ossos”, com parte divulgado em sua página no facebook. Desde já sugerimos à CEPE a publicação!
Ilustração: Death in the Sickroom. Edvard Munch
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