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Carta de Bernadete Bruto a Clarice Lispector

Berna

II COLETÂNEA DE MEMÓRIAS CARTAS A CLARICE LISPECTOR

                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                Elas moravam
 num belo país.
uma terra mágica
que se chamava
Literatura Pernambucana.

(Cassio Cavalcante)

 

Clarice,

 

Me pego cismando o que poderia escrever que lhe interessasse, caso esta carta parasse em suas mãos. Logo eu, cuja escrita engatinha a milhas de distância da sua bela composição. Minha proto-escrita oriunda lá do neolítico do escrever, com certeza não lhe atrairia na rudeza do rabiscar. Da mesma forma, sinto que, na superficialidade de suposta leveza que apregoo meu existir, sempre rindo muito de mim e dos outros, também dificultaria bastante me aproximar de você, mulher profunda. E a distância se arraigaria para mais além, quando buscasse experiências de vida similares. Não deixei a minha pátria ao nascer, não morei no exterior, nem queimei meu rosto em um incêndio. E ainda por cima, como alcançar a sua dor da menina, que cedo perdeu a mãezinha? São muitas distâncias entre nós…

Não tenho profundidade suficiente para chegar ao nível de seu mergulho interior ao escrever, embora sua escrita cause a empatia em quem, já nadou em águas revoltas, com fundas imersões. Imagino que minha experiência de vida não seria motivo para sua atenção. O que talvez você pudesse lhe interessar fosse à propósito de algumas passagens agradáveis que vivi em ressonância com a leitura de seus textos. O que de sua escritura trouxe de bom para uma leitora que escreve e gosta de apresentar trabalhos como o seu, utilizando-se de outras artes.

Recordo da bela noite em que cheguei à Confraria das Artes, um ambiente de que gosto muito de frequentar. Naquele momento, estavam lendo “A Hora da Estrela. Quer hora melhor para chegar a um lugar onde você se identifica? E foi lá, como também na Livraria Jaqueira, na Biblioteca de Olinda, em feiras literárias, juntamente com Taciana Valença e Vera Nóbrega que foi apresentada a performance “Eu, Clarice”. Para aquela apresentação, além do vestuário que achamos lhe representasse, colocamos uma máscara com sua imagem (inicialmente em preto e branco, e depois colorida). Naquela performance realizada a três, a     través de suas palavras, expomos  o seu processo criativo, no qual você equipara seu modo de escrever com a música, a pintura e cujo      tema versa sobre o instante.      E sabe de que livro as frases foram retiradas? “Água Viva”. Pois é… eu que me considero leve, optei pela ardência de palavras cunhadas a fogo naquele livro. Palavras espalhadas por cada página, como pequenos fios azuis e vermelhos formando a cabeleira de bolhas transparentes a boiar no mar da existência. Palavras que costumam queimar como brasa, deixando ferimentos na pele da alma. Assim, relembro como elas emergiram das profundezas daquele oceano interior e, ainda hoje, bailam em meu coração como uma velha canção do mar. É o meu livro predileto!

Também recordo da primeira frase escolhida para iniciar a performance, quando Vera dizia: meu tema é o instante?      Durante a apresentação, em determinado momento, eu falava algo que continua fazendo sentido para minha forma de viver: (…) e se eu digo “eu” é porque não ouso dizer “tu”, ou “nós” ou “uma pessoa”. Sou obrigada à humildade de me personalizar me apequenando, mas sou és-tu. Também inesquecível é o final da apresentação. Nele, fica declarada toda intenção pretendida através da escrita, por meio da frase que Taciana finalizava: Quem me acompanha que me acompanhe: a caminhada é longa, é sofrida, mas é vivida. Porque agora te falo a sério: não estou brincando com palavras      (grifo nosso).

E você acredita Clarice, que, por conta de nossa apresentação, ganhamos até um poema? O escritor Cássio Cavalcante escreveu para nós: “Três meninas, três Clarices”!  O recebemos      como uma grande honra. De minha parte, tenho a lhe dizer do encanto que foi encarnar sua personagem, como sei que foi do mesmo modo pelas meninas-Clarice. Posso afirmar em nosso nome, o quanto foi prazeroso, até, colocar pérolas, pintar o olho no estilo gatinho, escolher a vestimenta e aprimorar a apresentação. Através de suas palavras, levamos um pouco de você para o público, naqueles eventos em sua homenagem. Foram ocasiões memoráveis!

Espero que você, onde estiver, aprecie as homenagens que lhe fizemos. Tudo foi realizado com muito carinho, em respeito a sua palavra e à grandiosidade de sua escrita. Foi um tributo de “conterrâneas” da cidade do Recife, a cidade que você adotou como sua. Espero, um dia,  que esta cidade reconheça seu valor plenamente e que a casa abandonada na Travessa do Veras, local onde você residiu, seja transformada em uma casa-museu, concedendo-lhe um lugar de honra.

Por fim, aproveito o momento em que escrevo esta carta, para lhe desejar paz, agradecer aos ensinamentos provenientes da leitura de suas obras, as ocasiões especiais em que me agigantei, transformando-me em você. Despeço-me assim, com outra frase sua retirada igualmente do livro “Água Viva”, para afirmar que é do mesmo modo que desejo encerrar minha jornada: Quero morrer com vida. Juro que só morrerei lucrando até o último instante. E como não tenho pressa, ficarei por aqui, a todo instante, degustando a escrita alheia que muito me enriquece.

Muito agradecida,

Berna

 

Acesse o Edital de participação da Coletânea Cartas a Clarice Lispector

https://culturanordestina.com.br/ii-coletanea-de-memorias-cartas-a-clarice-lispector/

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