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Para que servem nossas ficções – Flávia Suassuna

Recentemente, tenho ouvido argumentações simplistas acerca das ficções e suas funções; tenho até falado em aula e em palestras sobre as funções da arte e da literatura para esclarecer… Porém, às vezes, é um texto escrito que, de verdade, me salva. E salva (e organiza) as minhas ideias.

Penso que, talvez, seja essa ignorância uma consequência da falta de discussão na escola e nas universidades e faculdades sobre o papel das ficções nas nossas vidas – no fim, o que estamos fazendo é reduzindo o currículo escolar a aprendizados técnicocientíficos (que são valiosos, é claro), mas que diminuem nossas percepções de outros campos os quais ampliariam nossas visões e nos fariam mais completos.

Diferentemente dos animais, que vivem em apenas um lugar – o peixe vive na água e a girafa, na savana –, nós, seres humanos, vivemos em dois ambíguos “habitats”, o concreto e o abstrato; somos seres biológicos e sociais, se é que essa última palavra nomeia a questão. Recentemente, alguém me disse que um ser humano é feito de células, e eu retruquei:

– Eu pensei que fosse de histórias…

Pois é assim que penso: nossa vida se faz de histórias: as que vivemos, as que contamos e as que nos contam e que se entrelaçam com as nossas e viram nossas, porque nos ajudam a contar as nossas, as que inventamos… Tudo junto nos precipita num processo de produção de pensamentos, saídas, soluções, fugas, reflexões, que transformam essa habilidade num ato final de triunfo da espécie.
Sei que estamos passando por uma crise muito forte e, nesse contexto, tendemos a transformar tudo num túnel sem saída. Porém nossas histórias são um acervo que nos move na direção de soluções e respostas. Desconsiderá-las, portanto, é desconhecer seu potencial de cura.

Sei também que passamos, às vezes, anos em labirintos… Entretanto é exatamente nesses tempos escuros que devemos reobservá-las, reexaminá-las para que, de novo, enxerguemos por onde ir…

Nossas histórias, desde que somos crianças, nos ensinam a lidar com a ansiedade; a suportar obstáculos, enquanto não os anulamos; a pensar os conflitos; a realizar desejos; a sobreviver psiquicamente enquanto caminhamos… Tudo isso vai fazendo a gramática de nossa personalidade e de nosso modo único de ser e ver, enfrentar e suplantar as dificuldades da vida. Com nossas narrativas, trocamos o real impossível pelo possível sonhado, inventado, procurado, encontrado, satisfeito… Por isso, nossas ficções são uma ferramenta para entender os enigmas do mundo, do desejo; os mecanismos do medo e do afeto; as engrenagens da identificação…

Nesse “habitat” social (que é abstrato), inventamos verdadeiras ficções consensuais as quais construíram saltos evolutivos que nenhuma outra espécie deu: na natureza não há nação, dinheiro, justiça, lei, democracia, direitos humanos, amor, casamento, fidelidade… Na verdade, essas “palavras” são fruto de uma ação ficcional que alterou o mundo que nos cerca de forma contundente, o que nos permite acrescentar que nossas narrativas afetam, e muito, a forma como sentimos e agimos historicamente.

Embora eu consiga ver que algumas pessoas sofrem muito – e ficam aprisionadas – quando aderem completamente a essas construções ficcionais compartilhadas (que, em parte, são um engodo coletivo alucinatório a que não podemos colar totalmente), também consigo reconhecer que esse sistema ambíguo é resistente, porque também sustenta alguns de nossos valores, agrega frações de nossa identidade, nos ajuda a construir nossos sentidos e nos humaniza.

A localização no exato ponto cardeal (nem aceitação total, nem negação total) é uma negociação vital que nos acompanha no percurso difícil de sermos seres que falam “duas línguas” – uma concreta, outra abstrata… uma real, outra imaginária… uma individual, outra coletiva…

O desafio é aprendermos o ponto certo em que a escolha não produza sofrimento pessoal desnecessário, nem rupturas e solidões dolorosas. Usando a razão e a sensibilidade, talvez possamos, com o acervo e o preenchimento de nossas ficções, ir ajustando as trilhas de nosso imaginário para que possamos fazer um futuro “que fale a nossa língua”, como diz Mia Couto.

Enfim, nossas ficções não só nos forjam: elas também são ferramentas irrenunciáveis para irmos elaborando passados, suplantando presentes e sonhando futuros melhores. Ou seja: com elas podemos ir adiante sem sair do nosso posto bonito de seres que agem não só pessoal e historicamente, mas também evoluem agônica e coletivamente, apesar das dificuldades…

Flávia Suassuna é escritora, poeta e professora de Literatura

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