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O nome disso – Flávia Suassuna

Um dos temas a que recorrentemente voltei nas minhas reflexões neste tempo difícil de isolamento que não começa, nem termina foi o da comunicação através de nossos vigorosos meios de comunicação – a televisão, o celular, a internet e, portanto, as redes sociais. Neles, há agora bilhões de produtores de conteúdo, possíveis graças à facilidade e ao baixo custo da comunicação. Porém constato também que estamos morando na Babel mais absurda de todos os tempos: aquela resultante de um mundo cheio de gente com meios de comunicação virtual inimagináveis há 10 anos nas mãos, mas onde faltam pessoas que consigam dialogar.

Cada um de nós carrega um pouco de culpa dessa situação esdrúxula: alguns jornalistas e professores, infantilmente, abriram mão de suas importantes funções sociais e passaram a dizer o que todos dizem ou o que todos querem ouvir ou pior: o que dizem os que se localizam no mesmo ponto extremo polarizado. O senso comum triunfa, com suas simplificações, com suas frases feitas, com suas receitas prontas que, evidentemente, não dão conta de nossas complexidades. O governo acha que tudo isso se resolve com uma suposta escola sem partido ou com cerceamento e não com informação mais plural e mais pluridirecional.

Também somos culpados quando não buscamos canais alternativos ou quando nem sequer escutamos quem pensa diferente: presos nas bolhas das redes sociais, não só falamos numa absurda caixa de eco e só acatamos o pensamento de quem pensa exatamente como nós (se é que isso existe), mas também, por alguma razão que
desconheço, estamos exigindo de nós mesmos dizer de novo o que já foi dito.

Não só: usando o poder dessas bolhas e seus mecanismos rápidos de compartilhamento, estamos, com muita violência, prejudicando carreiras, criando constrangimentos, humilhando e exigindo autoflagelações públicas espetaculosas. À proporção que desqualificamos o outro, realizamos uma cega, interesseira e, aparentemente, feliz autopurificação, num jogo parecido demais com o do Nazismo para ser aceitável. O resultado disso tudo é apenas embate de particularismos narcísicos que deságuam numa sociedade fraturada e incapaz de construir utopias coletivas, necessárias ao norteamento das ações cotidianas possíveis de todos.

Ao contrário do que poderia ser, nessas famosas redes sociais, continuamos violentos, preconceituosos, intransigentes, ou seja, nesses canais virtuais, escorre nosso ódio de cada dia em tal volume que alguns chegam a pensar que estamos piores do que sempre estivemos.

Além disso, estamos lendo nada ou quase nada; rotulando a tevê com mil defeitos, também não estamos assistindo a ela. Presos a outra tevê que cabe nas nossas mãos e pode ser portada em todo lugar, estamos subordinados à ditadura da futilidade mais avassaladora de toda a nossa história: publicidades, coreografias,
piadas, músicas de baixa qualidade, correntes de oração ameaçadoras, ou mesmo rápidas e curtas frases sem autores ou com errada autoria e, principalmente, as já famosas “fake news” circulam tão rapidamente que nossa memória não retém; chegam em tal quantidade, que enchem nossos celulares a ponto de os travar e inutilizar. E, então, descartamos… Nada fica, nada permanece… Os meios de pagamento são também espetaculares – um click em “limpeza rápida” e tudo se apaga. Nada fica, nada permanece. Tudo parece fácil, rápido, certo e possível: apagar, cancelar, prejudicar, excluir, agredir, calar… o outro é higiênico e cirúrgico; sem o outro, o mundo fica melhor e cada um de nós é dono da certeza única que está na raiz desses comportamentos.

Na verdade, isso tem vários nomes – superficialidade, violência, “demissão subjetiva” (segundo Lacan) e falta de tolerância com o outro. Sem olhar nos olhos uns dos outros, sem dizer o que o outro precisa escutar e sem nos dispor a ouvir, estamos nos afastando… Zapeando de uma guerra a um concurso de beleza, de uma criança
ferida a uma baleia encalhada, somos capazes de nos apiedar da baleia… E de acharmos que as guerras virtuais do mundo de hoje são uma boa prevenção contra a imigração ou a diferença que nos ameaça…

Seguimos sem pensar, escolhemos atalhos, o canal que todos veem, quem tem mais seguidores, quem vende mais… Sem atentar para o fato de que escolhemos. E, quando analisamos, apenas dizemos: está tudo errado… Nunca conseguimos ver as nossas próprias ações que fortalecem esse estado das coisas… Estamos uma sociedade
cheia de discursos e slogans, não de diálogos. Dizer que a tevê ou os jornais só mentem; adorar o professor ou o jornalista que diz apenas o que queremos ouvir; escolher o mesmo que a maioria escolhe; obrigar-se a dizer o que já foi dito é fugir – fugir da responsabilidade de ouvir, de pensar, de retrucar, de concordar, de discordar, de ser humano. Tudo isso está nos jogando num trajeto sem sentido que afogamos em bebida, drogas e outros desastres. E está nos colocando uns contra os outros.

O nome disso não é democracia. É tirania. O nome disso não é comunicação. É barulho. O nome disso não é felicidade, é depressão mascarada de bem-estar. O nome disso é hipocrisia.

É preciso pensar as palavras “responsabilidade” e “respeito”: alertar, resistir, pensar e agir de modo mais crítico e humano, de modo mais profundo e atento. Dessa riquíssima indústria cultural também faz parte uma herança que nos ensina o que já fomos. E todos nós temos responsabilidade em relação a esse legado: não iremos repeti-lo, é claro. Mas é necessário conhecê-lo para modificá-lo e tirar frutos dele; ter coragem para transmiti-lo. Esse insaciável apetite pelo novo está apenas nos fazendo consumir o que não tem qualidade. Enfim, é urgente pôr um fim nessa autoindulgência que está nos transformando em promotores diabólicos, sem limites e narcísicos. E não
nos anjos reformadores e aperfeiçoadores do mundo que pensamos ser.

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