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A voz da solidão, por Edson Mendes

edson mendes

Melancolia, pandemia e liberdade: quem sou eu neste novo mundo?

 

Não há este novo mundo, se você já conhece os outros, que são esses mesmos de Heráclito – e, se todos os mundos são novos mundos todos os dias, pandemia, peste, fome, desavença, cálculo, risco, abuso, desespero, isolamento e morte são velhas notícias de qualquer jornal, desde o dilúvio da Mesopotâmia e as pragas do Egito às chamas de Pompéia e o terremoto de Lisboa.

O que é novo, de fato, é o homem.

Há um crise generalizada, evidentemente.  Suas diversas dimensões, contudo, não são impostas pela natureza. A natureza não castiga, não perdoa, não lembra, não esquece. Os homens sim, manipulam, copulam e produzem eviscerações e pústulas, clones e vacinas, desilusões e esperanças, danos e benesses, maravilhas e monstruosidades.

O Estado moderno, capitalista e mínimo, não pode ser solidário se não for social, mas como tornar pública a saúde particular? E particulares os benefícios da economia comum? São perguntas difíceis, porque incompreensíveis ao homem que se recolhe e se limita às circunstancias de sua individualidade, esquecendo-se do religare: ligar mais uma vez, reunir, religar os fios do vestido, do sofá, da família, da ágora, da coletividade.

Neste novo-velho mundo, estamos tão concentrados na tela e nas teias do smartphone que julgamos poder eliminar do velho-novo sistema solar os diferentes, os contrários, os adversários, os divergentes, os outros mundos – modernos Procustos que pensam ser a medida de todas as coisas, das que são como são e das que não são como não são.

Nesta algaravia, o silêncio dos inocentes cala forte sob o clarim das ignorâncias:  quem pensa que sabe deseja calar quem não sabe, o poder econômico subjuga o político, a tecnologia submete a decisão, e as inteligências sapiens titubeiam perante as artificiais. Quo vadis?, diriam os profissionais da solidão. Para onde vais, ó espécie, ó demência, ó bile, ó vã e inútil liberdade prisioneira do pseudo-arbítrio dos loquazes…

A loucura (ekstasis) e a idiotia (morósis) são doenças da bile negra, como disse Aristóteles, ou são sintomas? A questão parece ínfima, mas é enorme: estamos dizendo, neste século 21, que é preciso eliminar os loucos e os idiotas – assim estilizados os que não pensam como nós – sadios e sapiens – e assumir o poder para imprimir um novo ritmo à velha rotação, isto é, os que têm a razão é que salvarão o mundo!

Há uma voz que nos lembra: não há nada de novo no front ocidental, embora hoje as drogas artificiais substituam as naturais de Asclépio, mas em Epidauro, no Ararat ou na Bahia, tanto faz, é preciso restabelecer algum equilíbrio entre os orixás e os olímpicos, entre os maníacos e os depressivos, entre os vícios e os vícios. A virtude está no meio?

Entre os excessos, de carência ou de fartura, a melancolia dos gregos – hoje a depressão dos cosmopolitas – pode ser um adjutório eficaz na fuga das prisões pandêmicas, desde que se faça uma pausa, mínima que seja, para pensar antes de agir.

As emoções humanas são todas úteis. O nojo, o medo, a raiva, o desprezo, a surpresa, a alegria, a tristeza, os sentimentos nos ajudam, ou nos obrigam, a enfrentar as realidades da vida e as dores do mundo. A tristeza, ou melancolia, pode ser um excesso, e portanto um vício, mas é o componente básico do gênio, isto é, o homem de exceção. Na mistura ideal (?), promove o comportamento de exceção. Diz Platão, em Fedro, que “há duas espécies de loucura: uma que é devida às doenças humanas; a outra a uma transformação, sob a influência divina nas nossas práticas ordinárias”.

Assim, a doença pode nos levar à transformação, não a do vírus, mínima, mas a de nossas práticas quotidianas, máximas, que, pesadas e avaliadas na lupa filosófica da fragilidade humana, levem à inflexão dos comportamentos, contendo delírios e aquietando espíritos.  Nós somos prisioneiros da liberdade, mas também somos senhores da reflexão e do argumento – refletir e argumentar, afinal, é o que  levou o homem da barbárie à civilização.

A voz da solidão, desta solitude forjada nos subterrâneos da crise pandêmica, não é apenas um lamento dos que sofrem, nela há também um sopro de alegria, que pesa e pondera sobre o nosso futuro comum: tudo passa.

Tudo passa, e passará, mas passará primeiro o temor da finitude mediata, junto com as desaglomerações, os confinamentos, as máquinas de respiração, os hospitais de campanha, os lockdown, os protocolos, o senso e, não se deve esconder, o bom-senso – forma sensata e equilibrada de decidir e julgar; razoabilidade, lógica, prudência, dizem os dicionários – isto é, uma forma de agir que não é afetada pelas paixões, que se pauta na razão e no equilíbrio, de acordo com os padrões e a moral vigentes…

Nesse novo mundo que virá serão restabelecidos os padrões vigentes, ou novas réguas de moral e ética, pensadas e refletidas, nos servirão de base para edificar um outro edifício social?

Sobre os escombros das atuais estruturas geopolíticas, econômicas e sociais  somente os líderes que venham a surgir destas horas infelizes serão capazes de transformar o cômodo no incômodo, o incômodo em vontade, a vontade em decisão, e assim, e por isso, e para isso, devemos laborar e orar, vigiar e punir, pesar e ponderar.

Sem a serenidade dos que pesam e ponderam, mas com a navalha do verbo, porém, o velho rapsodo já vaticinava olhando para trás: “prefiro ser esta metamorfose ambulante do que ter aquela velha opinião formada sobre tudo”.

E sobre uma nova ordem, disse Niccolò dei Machiavelli:  “não há coisa mais difícil de se fazer, mais duvidosa de se alcançar, ou mais perigosa de se manejar do que ser o introdutor de uma nova ordem, porque quem o é tem por inimigos to­dos aqueles que se beneficiam com a antiga ordem, e como tímidos defensores todos aqueles a quem as novas instituições beneficiariam”.

Aqui então podemos fazer uma pausa nesta breve interrupção do interstício, para refletir sobre o que dizemos, fazemos e propomos – porque há o risco de se repetir Tomasi de Lampedusa: “algo deve mudar para que tudo continue como está”.

Quem sou eu neste novo mundo?

Não sei, mas temo, peso, pondero, oro, laboro. E luto.

 

Edson Mendes de Araujo Lima obteve o 2º Prémio Filo-Lisboa 2020 com o texto A voz da solidão – Melancolia, pandemia e liberdade: quem sou eu neste novo mundo?

Júri: Adriana Veríssimo Serrão (Universidade de Lisboa), Armando Marques Guedes (Universidade NOVA de Lisboa), Cristina Robalo Cordeiro (Universidade de Coimbra), Irene Maria Portela (Instituto Politécnico do Cávado e do Ave), Luísa Neto (Universidade do Porto).

 

edsonmal@uol.com.br

27.10.2020

https://www.culturanordestina.com.br

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