II COLETÂNEA DE MEMÓRIAS – CARTAS A CLARICE LISPECTOR
Recife, 1º de setembro de 2020
Clarice, querida:
Hoje novamente senti aquela sensação. Uma sensação de vazio, da falta de algo que passa próximo, mas não chega. Como o vendedor de cuscuz, daquele que gosto, com leite de coco, e que só serve se for o da rua.
Ele apita na esquina de casa e quando corro para chamar, já vai longe…
Fico na vontade, pensando no próximo dia, na próxima hora, no desejo que, esperançoso, vai dormir embolado na decepção. Mas enfim, era só um cuscuz, só um exemplo. Ninguém vai ficar deprimido por causa de um cuscuz.
Pensando nisso, inevitavelmente, lembrei do seu conto Felicidade clandestina. A ânsia pelo livro e a menina gorda, baixa, de cabelos crespos e ruivos e sardenta fazendo pouco da humildade da colega. A vida às vezes parece com essa menina. Testa nossos limites, nossa paciência, nossa resiliência, enquanto enche seus bolsos do que supostamente preencheria nossos vazios, estes que não se preenchem.
Deus é a livraria, pai de todas as histórias, pai da Vida, e muitas vezes anda muito ocupado para saber o que ela anda fazendo da gente, não é mesmo? São os ratos, Clarice, os ratos…
Desculpa, remexi em tudo no seu conto. Mas me dá um desconto porque hoje estou no dia de vazio. É que imaginei que se nosso pai nos desse o livro certo seria diferente. Mas ele quer que a gente lute pelo livro que a gente quer ler, pela história que será a nossa, mesmo que para isso tenhamos que nos humilhar perante a Vida.
E nessa história ele não se mete. Ele é o dono da livraria, mas você deve lutar pelo título que escolheu para você. É justo, pelo menos para ele, se não fosse pela Vida, àquela sua filha gorda.
Está bem, está bem, estou confusa, ou talvez, extremamente certa.
Às vezes a gente espera que o dono da livraria nos dê aquele livro bonito de capa dura que tanto desejamos. Então a Vida (a filha sardenta) vem e nos dá um cartão postal da cidade onde moramos. Quer coisa mais sem graça, Clarice? E a gente espera mais, Clarice, bem mais… Quer saber do propósito, dos porquês, do para que.
É , estou lhe confundindo talvez, mas você já fez tanto isso comigo. Em quantos contos? Em quantos livros? Nunca iremos questionar seus questionamentos, nem mesmo querer saber quem ou o que era G.H ou a Coisa, por exemplo (mas me diz, por favor!).
Escrevi um conto que virou um livro que se chama Sumiço do ovo. E sabe por que? Porque perdi um ovo entre os afazeres domésticos. Claro, lembrei do seu conto O Ovo e a galinha, que você mesma disse não compreender, mas o fez. Portanto, me perdoe se mexi e remexi na confusão dessa clandestina felicidade.
Então hoje, nesse vazio, percebi a Vida sádica e cruel, chupando balas a fazer barulho enquanto não divide com ninguém. E nós, na ânsia de conseguirmos o livro, não percebemos as humilhações que ela nos faz passar.
Vamos todos os dias buscar o livro da Felicidade, que ela prometera emprestar, navegamos na alegria e na esperança e ela não nos dá. Mente, adia… E olha que é um empréstimo que um dia devolveremos. E ela promete, promete, promete…. A gente espera, espera, espera…
Quantos dias seguintes temos que esperar, Clarice? Você sabe, enfim?
Lembra desse trecho do conto? “Ela sabia que era tempo indefinido, enquanto o fel não escorresse todo de seu corpo grosso. Eu já começara a adivinhar que ela me escolhera para eu sofrer, às vezes adivinho. Mas, adivinhando mesmo, às vezes aceito: como se quem quer me fazer sofrer esteja precisando danadamente que eu sofra”.
Pois então, não tenho razão em hoje, dia de vazio, achar que a gorda é a vida? Que batemos todos os dias na porta e ela nega o nosso livro? E mente, diz que emprestou a outra pessoa? E dormimos mal, acordamos segurando a esperança.
Sabe, Clarice, estou aguardando a mãe da Vida chegar e desmascará-la, emprestando enfim o livro que ela tanto escondeu. Quero sair leve e feliz com ele, enfim, em minhas mãos, e ficar por quanto tempo quiser. Já pensou?
Sim, isso é ousar, Clarice, é persistir.
Viu que deixei o pai trabalhar? Que tentei resolver diretamente com a Vida? Sim, sim, não deu muito certo, eu sei, mas a mãe enfim chegou e resolveu tudo.
Mas sabe o que estou pensando? Quem seria a mãe da Vida? E por que depois de conseguir o livro tudo se fez tão tranquilo? Por que sentir-se uma mulher com seu amante? Seria a Morte a mãe da Vida? E o Paraíso seu amante, enfim?
Está bem, Clarice, está bem. Não é nada disso, mas poderia ser, num dia assim, em que o vazio bateu em mim.
Então vamos começar outra vez….
Recife, 01 de setembro de 2020
Clarice, querida:
Hoje novamente senti aquela sensação…
TACIANA VALENÇA é administradora de empresas por formação (UFPE-1988), assessora literária, árbitra e mediadora de conflitos, massoterapeuta, escritora, compositora, primeira vice-presidente da União Brasileira de Escritores-Recife e produtora cultural. Autora de Malu em Apuros e Especialmente Criança e (Febre (poemas), além de ter participação em diversas antologias. É responsável pelo projeto Conversando Perto de Casa, na Livraria Jaqueira, editora da Revista Perto de Casa, criadora do projeto Navegando em poesias e co-coordenadora do Destaque Literário na Cultura Nordestina Letras & Artes. Links onde podem ser encontrados um pouco dos seus escritos: http://ensaiandopoesias.blogspot.com/
https://www.recantodasletras.com.br/autor.php?id=27346
Acesse o Edital de participação da Coletânea Cartas a Clarice Lispector
https://culturanordestina.com.br/ii-coletanea-de-memorias-cartas-a-clarice-lispector/
Uma resposta
Uma carta um tanto confusa, confesso. Tal qual estamos hoje, diante da vida.