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O jeito pirata de ser – de Martha a Fred, por Salete Rêgo Barros

O século XX assistiu à semântica da palavra “pirata” – “aquele que ataca ou rouba navios” – distanciar-se do sentido original de forma pragmática: “aquele que viola direitos autorais”, “aquele que adultera e falsifica produtos”, “aquele que não possui estrutura comercial ou empresarial”, “aquele que subverte costumes e a ordem estabelecida” e “aquele que se arrisca, que empreende por conta própria”.

No início do século passado, em Vitória de Santo Antão uma jovem mulher encarnava o jeito pirata de ser ao subverter costumes e a ordem estabelecida, enfrentando a sociedade conservadora da época: casou com um poeta – José Teixeira de Albuquerque (meu tio-avô), execrado da família por se unir a uma pervertida. Com um vestido curto, sem mangas, enfeitado de paetês, subiu ao altar. Numa espécie de provocação, antes da cerimônia resolveu passear pelas ruas da cidade em carro sem capota e mostrar o modelo que vestia. Entrou segurando um buquê iluminado por uma pilha escondida sob o arranjo. Uma criança quase nua, representando um cupido com uma tiara de flores, asinhas, arco e flecha, levava as alianças escandalizando os convidados.

A sua maior ousadia foi lutar por direitos feministas. Conseguiu, através de medida judicial, o direito ao voto tornando-se a primeira eleitora de Pernambuco. Em 1931 fundou a Cruzada Feminista Brasileira, com forte atuação nos anos seguintes e, estrategicamente, usou os jornais impressos para divulgar seu pensamento. Dedicou-se à poesia, ao jornalismo e ao feminismo. Escrevia no jornal O Lidador, de Vitória de Santo Antão. Era a favor do divórcio e não submetia as propostas do movimento feminista aos valores cristãos. Era ousada no vestir-se, inventava moda, usava roupas extravagantes, penteados inusitados, cores fortes, decotes incomuns à época, roupas feitas em alfaiates e muita maquilagem. Algumas vezes, vestia-se como homem. Transitava com um bem talhado paletó, gravata e bengala. Fumava, bebia e recebia intelectuais locais e vindos de outras partes do país, em sua casa, na rua do Lima, no Recife, para saraus musicais e poéticos até altas horas. Publicou, apenas, um livro de poemas – O delírio do nada, em 1930, apresentado por Alberto de Oliveira, Coelho Neto, João Ribeiro, Júlio Pires, Oscar Brandão e João Barreto de Menezes. Faleceu aos 57 anos sem deixar filhos.

Movimentos pela democratização da expressão literária surgem motivados por crises políticas e econômicas que, via de regra, inviabilizam a cadeia produtiva do livro para a maioria dos escritores. Enquanto a necessidade de publicar aumenta, a crítica em torno do que está sendo publicado também aumenta, e as formas alternativas de expressão através da arte crescem na contramão do conservadorismo. Vários exemplos podem ser citados em Pernambuco, entre eles:

– Geração 45

O seu maior representante em Pernambuco é João Cabral de Melo Neto, que desmonta o conceito tradicional de poesia dando ao gênero um novo formato, totalmente diferente do lirismo poético vigente. O poema “O cão sem plumas” denuncia, numa linguagem metafórica, as questões da população ribeirinha do Rio Capibaribe, no Recife, e como essas questões sociais e políticas desumanizam o homem.

 

– Gráfico Amador (1954)

Fundado pelos intelectuais Aloísio Magalhães, Gastão de Holanda, José Laurênio de Melo e Orlando da Costa Ferreira, com o objetivo de publicar pequenos textos literários, principalmente poesia, em tiragens artesanais limitadas.

Era uma oficina experimental de artes gráficas, que se iniciou com uma antiga prensa manual e uma velha fonte de tipos, adquiridos por seus fundadores pela quantia de 10.000 cruzeiros.

Funcionava na Rua Amélia, nº 415, no bairro do Espinheiro, no Recife e, para conseguir manter-se atuante, contava com a colaboração de sócios entre artistas e intelectuais pernambucanos, que contribuíam com uma cota mensal e recebiam alguns livros por ano em contrapartida.

As edições revelam uma acentuada preocupação artística, quanto à escolha dos tipos, o aproveitamento dos espaços em branco, a composição e a apresentação.

Suas atividades foram encerradas em 1961, quando os fundadores mudaram-se para o Rio de Janeiro.

 

– Geração 65 ou Grupo de Jaboatão

Formado, inicialmente, por jovens poetas. Seus fundadores e primeiros participantes foram Jaci Bezerra, Alberto Cunha Melo, Domingos Alexandre e José Luiz de Almeida Mélo. A estética e a verdade preponderavam sobre as concepções ideológicas, políticas e religiosas. Os poemas falavam do cotidiano com suas “grandezas e misérias, belezas e fealdades, alegrias e dores desta enorme cidade tropical” (Tadeu Rocha). Outros gêneros literários foram sendo atraídos ao ponto de, em artigo publicado no Diário de Pernambuco, Gilberto Freyre propor a ampliação do Grupo, incluindo “todos os que se dedicavam ou apoiavam a produção cultural – como escritores, artistas plásticos, jornalistas ou políticos”.

 

– Edições Pirata

Surge, em 1979, momento de grande efervescência da Geração 65, por iniciativa de Eugênia Menezes, Myriam Brindeiro, Jaci Bezerra e Alberto da Cunha Melo, nas dependências da Fundação Joaquim Nabuco, local de trabalho de vários integrantes do movimento. O selo editorial Edições Pirata publicou, até 1985, mais de 300 títulos, com lançamentos coletivos realizados na Livro 7, escadarias, esquinas, praças e bares. Os livros eram confeccionados, artesanalmente, pelos próprios autores em locais inusitados, como uma vacaria nos fundos da casa de um jornalista, e o terraço da casa de uma das integrantes do movimento, Myriam Brindeiro, último pouso da Pirata, após ter sido expulsa de outros locais, por diversos motivos, entre eles o barulho que o grupo fazia enquanto o roda-roda varava a noite, após encerrado o expediente de trabalho na Fundaj.

A experiência, precedida pelo Gráfico Amador, dava continuidade, também, ao trabalho desenvolvido pelo TPN, criado por Hermilo Borba Filho. Ou seja, a Pirata pretendeu cultivar “o ânimo de criar, o de fazer, o de brigar, no Nordeste, pelas coisas em que acreditávamos”, diz Eugênia Menezes.

Vale mencionar, aqui, as publicações alternativas Fandango, editadas pelos poetas da Rua do Imperador; Pró-texto, de Arnaldo Tobias; Revista Poesia, de Juareiz Correya, entre outras.

 

– Movimento de Escritores Independentes (1981)

Inspirado na Geração Mimeógrafo, surgida no eixo Rio-São Paulo, o grupo era formado quase na sua totalidade por poetas que, além de inéditos, eram adolescentes ou muito jovens, nascidos na década de 1960, e que cresceram sob a ditadura militar. Em outras cidades do Brasil surgiram iniciativas semelhantes, que utilizavam o mesmo nome, mas Pernambuco foi o estado que viveu a experiência de forma mais intensa, tanto pelo número de escritores, quanto pelos eventos realizados. A proposta ética dava coesão ao trabalho, e não havia uma proposta estética. O maior incentivador do movimento foi Alberto da Cunha Melo, que dava suporte aos jovens opinando, revisando e publicando os trabalhos em sua coluna “Suplemento Cultural”, no Jornal do Commercio.

Dele participaram Eduardo Martins, Francisco Espinhara, Cida Pedrosa, Dione Barreto, Andréa Motta, entre outros. As oportunidades de mostrar o trabalho eram criadas através de agitação cultural nos espaços urbanos, com realização de recitais de poesia, organização de eventos, edição de jornais literários e dos próprios livros, feitos de forma artesanal e custeados pelos próprios autores em mimeógrafos, xerox e pequenas gráficas. Os recitais aconteciam nas ruas e bares, locais onde os livros eram, também, comercializados, a exemplo do Bar Casarão, do Beco da Fome, da Praça do Sebo (Rua da Roda), na Rua Sete de Setembro, especialmente em frente à livraria Livro 7 e Lojas Americanas, no Recife, do Bar Savoy e de bares localizados em Olinda.

 

– Novoestilo Edições do Autor

Surge em 1995, em Olinda, tendo como motivação maior a publicação dos originais engavetados da professora Ivanete Rêgo Barros, então presidente da União Brasileira de Trovadores, que, ao receber de uma editora do eixo Rio-São Paulo, o percentual referente aos direitos autorais pela venda de 8.500 exemplares, em nível nacional, do infantojuvenil No mundo dos insetos, de sua autoria, sente-se chocada e totalmente desmotivada a publicar o restante de sua obra, visto que o valor irrisório cobriu, apenas, um lanche para ela e sua filha, na melhor lanchonete da cidade: Confeitaria Confiança, localizada na rua da Imperatriz, no Recife. A partir daí, passei a editar, imprimir e publicar os livros de minha mãe.

De forma artesanal, com impressão da capa feita em impressora jato de tinta, miolo a laser e acabamento terceirizado, mais de 500 títulos foram publicados através de pequenas tiragens (50 exemplares). Poetas e escritores independentes, ou ligados a grupos literários, tiveram a oportunidade de ter os seus escritos publicados, individualmente ou através de coletâneas, e a participar de feiras de livros, festivais de literatura, bienais, exposições, etc., expondo a sua obra.

Atualmente, as edições de 50 exemplares possuem um caráter experimental, e o limite da tiragem é o bom senso. A edição leva o selo Novoestilo Edições do Autor, e as tiragens maiores são terceirizadas com gráficas profissionais.

Em 2012, um espaço de convivência foi criado para que os autores da Novoestilo compartilhassem suas experiências literárias, fizessem cursos, lançassem seus livros e frequentassem um território de acolhimento, trocas, oportunidades e realizações, chamado de Cultura Nordestina Letras & Artes, reconhecido como Ponto de Cultura pelo Ministério da Cultura, por ter agregado, também, outras expressões artísticas.

Um documentário está sendo realizado, pela Cultura Nordestina e Portal de Artes, para que a memória da literatura pernambucana seja preservada.

 

– Movimento Cartonero

Surge no início da crise econômica na Argentina, em 2003, e se espalha por outros países, inclusive o Brasil, chegando a Pernambuco em 2007 com o objetivo de expandir a acessibilidade ao mercado literário, transformando as concepções e as influências ao consumo a partir do aproveitamento do papelão para a confecção de livros, desenvolvendo uma ética ambiental. Com essa nova forma de confecção, envolveram-se catadores de lixo e diversas pessoas que, juntos, buscaram proporcionar uma leitura comum a todos, já que o custo no processo de produção é baixo.

A partir do contato com a editora Lara Cartonera, na cidade de Belo Jardim, o pernambucano Fred Caju teve seu primeiro livro analógico publicado. Atualmente, o poeta é dono da editora Castanha Mecânica e tem compartilhado com outros autores e leitores o desafio de pensar o livro dos originais à distribuição e vendas. Também participa de eventos, mesas e debates sobre artesania e autonomia editorial.

Este pequeno ensaio pretende reconstruir as trilhas percorridas pelos que entendem a arte, a educação e a cultura como um caminho viável para a construção de uma sociedade sadia.

Contribuições no sentido de corrigir possíveis distorções involuntárias na percepção dos fatos serão muito bem-vindas. Afinal, a verdade histórica deve ser contada pelos seus protagonistas.

 

Salete Rêgo Barros

Produtora cultural executiva da Cultura Nordestina

6 respostas

  1. Salete, parabéns pelo belo e importante texto sobre a trajetória da produção Literária em Pernambuco!!!
    Que o espaço da Cultura Nordestina LetraseArtes seja de produção, divulgação da Cultura como instrumento de humanização!!!
    Abraço fraterno Ivanilde

  2. Excelente retrospectiva! Tem algumas iniciativas que não conhecia. Foi bastante esclarecedor. E aplaudo o jeito de ser pirata !

  3. Excelente retrospectiva! Tem algumas iniciativas que não conhecia. Foi bastante esclarecedor. E aplaudo o jeito de ser pirata !

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