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O chihuahua no cinema, por Bruna Estima Borba

Na fila ela se sentiu observada. Virou-se, o homem era bonito. Com o resto da autoestima que sobrara de quase duas décadas de passarela, encarou e ele tomou a iniciativa.

– Olá, gosta de documentários sobre aviação?

– Mais ou menos, esse era o único disponível.

– Já eu, sou piloto. Está sozinha? Porque eu estou.

– Mais ou menos.

– Nossa, você sempre traz seu chihuahua para o cinema?

– E ele ainda passa o filme comendo pipoca.

– Duvido, quero ver.

Entraram. Duas horas depois estavam felizes. Teriam encontrado suas almas gêmeas? Ele gostava de cães, embora a profissão não tivesse permitido. A moça explicou que levava o cachorrinho para todo canto, inclusive nos desfiles, escondido na maleta. Tinham um truque, os dois: acomodava o animal disfarçado de ursinho de pelúcia e ele, quietíssimo, passava batido.

O relacionamento da modelo decadente com o piloto, sensível e solteirão prestes a se aposentar engrenou. Ela ficava com Hércules – só podia ser ironia – durante as ausências do namorado. À noite era a hora do seriado e da pipoca – já haviam assistido a quase todos os documentários de aviação – com ou sem o piloto.

Um dia foram surpreendidos pela pandemia, um vírus minúsculo – infinitamente menor que Hércules – e potencialmente fatal. Faziam parte do grupo de risco – ela com cinquenta e nove anos, ele com sessenta e cinco. O chihuahua, apesar de imune, também era idoso, e o jeito foi o isolamento, as máscaras, o álcool gel. O momento coincidiu com a aposentadoria forçada dele, já tinha o tempo, não era possível manter todos os voos, a companhia o dispensou.

Passaram a ficar em casa e a vida virtual que os jovens já haviam incorporado se impôs. Faziam compras pela internet, supermercado, remédios e tudo o mais, até uma pequena churrasqueira elétrica para levar à varanda e fazer de conta que estavam se divertindo e, ademais, Hércules adorava salsichas grelhadas. No dia que precisaram do médico e do veterinário tudo foi on-line, consultas por webinários, exames em domicílio. Ginástica virtual todas as manhãs.

Alguns meses depois a onda viral passou, o mundo foi entrando nos eixos, pessoas iam se visitar, frequentavam parques, restaurantes, praias, shoppings, cinemas. Todos, menos eles, pois não viam TV nem frequentavam redes sociais e ficaram alheios às boas novas. Continuaram vivendo virtualmente, era mais cômodo e eles se bastavam os três: a ex-modelo, o piloto aposentado, o chihuahua.

Gostaria de dizer que foram felizes para sempre. Contudo, o sempre não existe. O tempo, inexorável, o corta. Mais cedo ou mais tarde, eis o grande mistério. Ficaram velhinhos, já não enxergavam tão bem. Um dia pediram pimenta do reino no mercado da esquina, o atendente se enganou e enviou bolinhas baraticidas. Na churrasqueira na varanda as salsichas ficando prontas, um pouco da pimenta do reino, uma delícia. Náusea e envenenamento. Primeiro o piloto, pois tinha comido três salsichas cheias de baraticida. Depois ela, depois Hércules.

Foram encontrados três anos depois por ocasião de uma nova pandemia, novo vírus – quem sabe o mesmo retornara vingativo? – numa vistoria da saúde pública em imóveis desocupados. Mortos, sentados na varanda – ele, ela, Hércules entre os dois – certamente felizes. Agora sim, para sempre.

 

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Serviço:

QUARENTENA CULTURAL DA CULTURA NORDESTINA

Rua Luiz Guimarães, 555, Poço, Recife

Fone: (81) 30973927

7 respostas

  1. Bruna, grata por participar de nossa Quarentena Cultural. Um conto bem elaborado, gostoso de ler, marca registrada de todos os seus textos. Parabéns!

  2. Parabéns Bruna, como sempre você nos surpreende com essa maravilhosa leitura!!!

  3. Bruna, parabéns! Seus contos são leves e instigantes. Leitura fácil e divertida! Adorei!

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