Search
Close this search box.
Search
Close this search box.

Festa junina, onde? Nos devaneios de Roselis Batistar

 

Meus pais decidiram vir morar em Recife, e eu e meu irmão nos adaptávamos, sentindo-nos jogados como numa jangada  indefinida, indecisa, pois ainda pré-adolescentes já tínhamos vivido em 4 cidades, todas elas com praias. Bom, pensávamos, “Recife também tinha praias”, e lá morava nosso tio que  era da SUDENE em Boa Viagem, um bom bairro com uma praia sem tubarões visíveis na época; aliás ninguém nem se lembrava  que os tais peixes enormes existiam. Hollywood ainda não os havia difamado. (Hoje, que já morei em umas 15 ou 16 cidades em minha vida, e que em cada uma delas aprendi algo, diria que os mexicanos têm razão de chamarem a maioria dos americanos de ”estomaguitos”, –  e Hollywood não escapa -. Perguntei-lhes por quê.  E os mexicanos responderam:  (“Porque todo lo que tocan lo transforman en mierda”.) (Sei que tal observação sobre essas outras culturas, eu deveria pôr em nota de rodapé, mas não consegui, pois inserida no texto logo de início pode sublinhar as exceções, logo o positivo na frente do negativo).

Fomos estudar em uma escola particular não famosa pela qualidade de seu ensino, nem muito exigente com seus alunos, o que, segundo meu pai, amenizaria a nossa possível depressão por ter deixado em Santos nossos amiguinhos, nossos hábitos, escola, professores,  club de Regatas e outras familiaridades.

Recife pareceu-me bela, arborizada, colonial em muitos lugares, e cheia de pernilongos no bairro em que meu pai adquiriu uma casa de três quartos. O fato de ser num bairro obrigava-nos a tomar ônibus, e isso era um dos pontos de nossa segunda etapa no conhecimento da cultura e dos costumes locais . Do que eu mais gostava  era do ônibus no dia da feira, da paciência do motorista esperando que entrassem pela porta da frente, ou por qualquer janelinha os sacos  e as sacolas com tudo o que se possa imaginar: quiabo, maxixe, batata-doce, jerimum, papagaio, gaiola de passarinho, galinhas com o bico aberto de sede – o sol estava a pino ao meio dia – e milho, inhame,  filtros e moringas de barro, além de meninos pequenos – uns já desmamados, outros agarrados na saia da mãe, esperando que ela entregasse pela janelinha ao parente que já estava lá dentro, tentando depois aboletar-se na poltrona que, empurrando o povo passageiro, ele tinha conseguido “reservar”. Eu e meu irmão apreciávamos com calma o movimento, nós, sentados, que havíamos subido umas três paradas antes. Rimos muito no dia  em que conseguiram levantar um bode de cara chateada tentando já chifrar os traseiros daquele mundaréu de gente atravancada nos degraus da porta de entrada do veículo público. Mas era preciso cuidar das patas traseiras do animal, pois coice não é só cavalo quem  dá.

Mas no centro estava nossa escola. Nem me lembro das aulas nem de nenhum professor . Recordo sim dos alunos,  daquele rapaz grandalhão, moreno claro de olhos verdes, que o que tinha de bonito, tinha de machão. Eles não me enchiam mais a paciência porque meu irmão ficava na mesma sala que eu; as semanas passavam e nossos sotaques pareciam um parque de atração para os rapazes daquela escola. Todos os dias “buliam” comigo porque eu falava diferente, porque eu era paulista, por isso, por aquilo. Ligar era perder tempo, mas que enchiam as pacovas, isso sim, enchiam.

Corriam os anos de nossa adolescência,  lá por 1963, e tudo nos parecia sumamente interessante. Seria a primeira vez que passaríamos  as festas juninas no nordeste do Brasil, sem aquele frio de Santos, e encontraríamos o que nossa mãe nos contava, ela que havia sempre passado sua infância e adolescência na Paraíba, mas de mãe pernambucana. Eu queria comparar, e a primeira coisa que me saltou aos olhos foi a quantidade de espigas de milho, amarelas como os cabelos compridos e tingidos da garota pernambucana do nosso colégio, a mais “badalada”, a única que  me fazia sombra, a que se achava o máximo da beleza e da vaidade. O colégio parecia preparar-se para aquelas festas, e nós só aguardávamos que o tempo comprido passasse para descobrir o que o São João de Recife tinha de diferente. Meu irmão se enturmara com uns jovens vindos do interior  para estudar  na capital, um rapaz e duas mocinhas, todos os três  loiros, residentes do prédio em que havíamos morado, ali na rua da Palma, antes de ir para aquele bairro crivado de  pernilongos e maruins. Os pais dos três irmãos deveriam ser algo abastados, pois o rapaz, o mais velho de todos, tinha até um jipe à sua disposição. O mês de junho se aproximava, e em casa o clima de tensão familiar também.  Meus pais falavam em voltar . Para São Paulo capital dessa vez . E minha avó paterna que morava conosco, com quem ficaria? Enquanto discutiam coisas de adultos, meu irmão  não estudava nada, e eu só tocava um pouco de piano, o mínimo necessário para não passar vergonha com o professor Manuel, lá do Conservatório Pernambucano de Música

Decidiram fazer uma eleição no colégio antes do  São João. Salete, a loira oxigenada,  foi eleita a primeira rainha, e eu, que não fora candidata a nada, a segunda rainha. Perguntei então de que,  rainha de que, de qual reino, ao receber a notícia do resultado de uma eleição da qual não me haviam informado. Disseram-me:

– Você será a nossa segunda Rainha do Milho, a primeira é a Salete.

Ah, a  Salete, a que tinha os cabelos de espiga de milho, a arrogante e convencida Salete. E indaguei aos meus futuros súditos, quais seriam minhas obrigações.

– E rainha tem obrigação? Você abrilhantará os bailes, deverá se mostrar, estar presente, bem vestida, bem pintada, bem penteada.

Aí eu pensei que era melhor não dizer nada, afinal aquela chusma de alunos colegas achou que me fazia um favor, pois não é toda rainha que fala “paulista” em Pernambuco, e que apesar de forânea, tinha  sido eleita. Duas rainhas, não me entravam na cabeça,  – seria o rei bígamo? – mas  eu não queria ter mais problemas do que os que havia em casa, vovó, intermediando as discussões. Aceitei sem argumentar. Os dias passavam devagar demais, e no entanto o meu reinado coalhado de iguarias de milho, daria início  logo logo, e talvez não houvesse quadrilha como nas cidades de São Paulo, e ninguém me imporia o papel de noiva, como o fizeram em Santos, e eu tive que fingir que era a noiva daquele menino sardento e feio, do braço quente. Não, pensei, melhor ser rainha, primeira, oitava ou décima, rainha pode mandar:

– ”Tragam-me duas pamonhas e um bom prato de manguzá! (ou é munguzá?)  Nunca soube nem nunca reinei, nem com “u” nem com “a”.

Na véspera da primeira comemoração junina, meus pais disseram:

– Arrumem as malas! Vamos voltar pra São Paulo!

Lembro-me perfeitamente do último dia em que fomos ao colégio. De estar ao lado de meu irmão, os dois em silêncio,  no ponto do ônibus, ele com um ar contrariado, pensando em sei lá o quê!

Há frustrações que ficam conosco a vida toda. Essa que acabo de relatar é dupla, pois além de não ter reinado e enchido a pança de coisas gostosas, eu tive que acompanhar meus pais, fossem aonde fossem. Não conheci as festas juninas do nordeste de meus ancestrais, nem como súdita, nem como rainha do milho!

 

Reims, 2 de junho de 2020

https://www.culturanordestina.com.br

Gostou? Compartilhe!

Respostas de 4

  1. Roselis, é maravilhoso ler algo tão importante em termos de lembranças que carregamos na memória e, de repente, podemos colocar na realidade para ser apreciada e mais, de um tempo que se foi… só está presente nas recordações.
    Grata por ajudar, com sua escrita, fazer uma viagem a esse tempo histórico que trazemos em nós.
    Abraço Ivanilde

  2. Roselis,
    O seu texto: Festa junina, onde? Me faz lembrar dos tempos de fogueiras, fogos, amigos… brincadeira…, lembranças lá do passado…
    Ainda bem que passado é passo dado não devemos repetir, apenas, trazer dentro de nós para nunca esquecer quem somos e de onde viemos; muito embora ele as vezes surge como uma explosão… paramos, recordemos e o deixemos em seu devido lugar, no passado!!!
    Abraço Ivanilde

  3. Tão gostoso essas memórias afetivas!!
    Parabéns Roselis, por esse conto que resgata a cultura nordestina, tão rica e encantadora!

    É sempre muito prazeroso ler suas narrativas. Espero usar em breve esse seu texto nas minhas aulas de português para Ensino Médio.

    Silvana Santolia

  4. Simplesmente fantástico. Maravilhoso texto. Deliciei-me do princípio ao fim. Parabéns minha querida poeta escritora Roseli Batistar. Grande abraço do Brasil.

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *