QUARENTENA CULTURAL DA CULTURA NORDESTINA
Volto ao território sagrado de uma infância introspectiva e harmoniosa. Um de meus maiores desejos era flagrar o instante em que o botão se abrisse, transformando-se em flor – somente assim, eu descobriria o segredo da vida. Acredito que, em determinados momentos, todos nós precisamos regressar ao nosso quintal em busca das borboletas e do que é essencial para a nossa felicidade.
Meu mundo era lá, aonde eu acompanhava os passos daqueles que me mostravam o caminho que eu deveria trilhar. Os restos recolhidos da cozinha eram colocados num buraco fundo, cobertos com uma pá de terra e um punhado de cal, diariamente. Hortaliças, frutas e verduras eram carinhosamente cultivadas e colhidas para o preparo das refeições. Um pouco antes de o sol se por, as plantas eram regadas e os ovos recolhidos dos ninhos das galinhas. Nas sextas-feiras, dia em que todos se envolviam com a limpeza da casa, minha avó preparava o pão sovado, colhia cravos, rosas, dálias e crisântemos para colocar nos jarros, distribuir com a vizinhança e, no dia seguinte, enfeitar os altares da Matriz.
Certo dia, ao chegar à escola para me buscar, meu avô anunciou que o buraco estava cheio e pronto para receber a muda de parreira. “Quem vai plantar é você”, avisou. A expectativa de colher cachos de uvas brancas, enormes, perfumados e deliciosos perdurou durante longos dias e noites. As ramas iam sendo, pacientemente, enroladas nas estacas fincadas ao redor do tronco, à medida que elas cresciam e os minúsculos cachos surgiam.
O que era colhido no meu mundo era admirado por vizinhos, parentes e amigos, que nos visitavam, enquanto tudo o que ali acontecia estava sendo projetado para me acompanhar como metáfora, pelo resto da vida.
Os livros e a observação foram me mostrando que o progresso da humanidade estava ligado à ideia de dominação da Natureza pelo homem, e do homem pelo seu semelhante. No entanto, essa prática implicava na destruição do solo, na poluição do ar, na extinção de muitas espécies, nas alterações climáticas, entre outras consequências desastrosas, que não tinham nada a ver com o meu quintal; observava que os povos que tinham o propósito de viver em comunhão com a Natureza, a paz e a igualdade, tornavam-se presas fáceis e eram dominados por outros povos – gananciosos, agressivos, egoístas, prepotentes e militarizados.
Retrocedendo na linha do tempo histórico encontrei, nas descobertas arqueológicas de Qumran, perto do Mar Morto, detalhes da vida dos essênios – tribo de judeus da qual Jesus descende –, coisas muito interessantes: nas escavações não foram encontrados vestígios de armas, mas sim, de práticas artísticas e estudos de plantas medicinais, educação e astronomia; eles dedicavam as manhãs ao plantio e colheita do trigo, gergelim e frutas, e à preparação do pão e do mosto de uvas; foram os primeiros a abolir a escravidão; devido à fartura de alimentos dividiam tudo entre eles; desconheciam a fome, a miséria e as doenças; vivam em paz com os vizinhos, porque sempre tinham muito o que oferecer e nada a cobiçar; produziam instrumentos musicais, para a escrita, culinária e agricultura. Estranhamente, 70 anos após a morte de Cristo, eles desapareceram.
A nova ordem mundial, que defende o progresso da humanidade numa velocidade assustadora, entra em colapso, na primeira metade do século XXI, mostrando-se ineficaz no controle da pandemia provocada pelo coronavírus, que se alastra numa velocidade igualmente assustadora.
O raciocínio de que a evolução se dá em sentido único, na linha do tempo, é questionável do ponto de vista da consciência humana. O surgimento de um novo céu (consciência) e de uma nova terra (manifestação da consciência no mundo físico) é vital para a sobrevivência da espécie humana. A humanização do homem passa pela conscientização de que ele é o único responsável pela forma como está se relacionando com a Natureza e seus semelhantes, e pelas consequências causadas por esse relacionamento. A questão agora é: evoluir sem esperar que mitos e heróis venham resolver tudo por nós, ou morrer. Simples assim.
Fotografia: Rivaldo Mafra
Respostas de 13
Adorei o texto, tocou-se muito, foi como falasse ao meu coração, obrigada.
A intenção é essa, Edna – tocar o coração das pessoas.
Importante assunto a ser levantado. Como foi muito feliz recordar a presença dos essenios e muito mais compartlhar memórias de sua vida.Como se não bastasse chega a flor de Rivaldo e a notícia de sua postagem de flores. Gratidão Salete!
Filosoficamente profundo e ao mesmo tempo sentimental. Para mim, essa face de Salete era desconhecida. Pensava ser unicamente administradora de espaço cultural. Correndo de um lado para outro, “aperriada”, em busca da concretização de um sonho. Esqueci a lição de Nietzsche; “nada do que é humano me é estranho”. Fico feliz em ter participado com a foto
Este é o lado bom do confinamento – agora posso me dedicar a uma das coisas de que mais gosto: escrever.
Beijo no coração, amiga.
Filosoficamente profundo e ao mesmo tempo sentimental. Para mim, essa face de Salete era desconhecida. Pensava ser unicamente administradora de espaço cultural. Correndo de um lado para outro, “aperriada”, em busca da concretização de um sonho. Esqueci a lição de Nietzsche; “nada do que é humano me é estranho”. Fico feliz em ter participado com a foto
Parabéns Salete pelo belo texto que nos presenteaste, não te conheço mas já passo a te admirar. Vc nos lembrou de um dos momentos mais belos da natureza que é o desabrochar de uma flor. Nos lembrou tb dos essenios povo sábio de onde nosso Mestre Jesus aprendeu e tornou-se um Mestre ensinando a todos que o cercavam, revelação dos papiros de Quran no mar Morto. Obrigado Salete ,desde já tens um admirador
Li com muito carinho e atenção, gostei muito, passei a vivenciar alguma coisa de minha infância junto aos conselhos e orientações do meu admirado pai.Chamou-me muita atenção o fato da autora do texto ter o desejo de ver um botão de rosas se transformar na própria rosa, me fez lembrar o privilégio que senti, , há anos atrás qdo residia em um prédio de aptosem S.Bernardo do Campo, S, Paulo, havia um jardim com pés de roseiras, com já rosas prontas a serem colhidas e alguns botões, talvez esperando me mostrar seu desabrochar e virar mais uma das belas rosas, que me fez admirar mais ainda a natureza . Parabéns mais uma vez pelo bom gosto.
Muito obrigada, Salete
Excelente texto literário.
Suas lembranças evocam a simplicidade e pureza da vida de outros tempos.
Uma delicadeza nesta época de tanto medo e apreensão.
Abraço
Li com muita atenção, até porque como externa a titular do texto, fez me lembrar uma passagem que marcou em minha vida há bons anos atrás, qdo tive o privilégio de ver o desabrochar de um botão de rosas virar uma linda e grde rosa vermelha que me lembra até hj .Passei a acreditar mais ainda dos mistérios e a grde beleza da mãe natureza. Parabéns pela iniciativa e dar a mim a oprtunidade de lembrar um momento marcante em minha vida.grde Abraço.
Por um instante, transportei-me para seu quintal e identifiquei-me prontamente com você. Amei o texto!
Belo texto! Reflexivo, como o momento suscita !