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Crônicas de uma cidadã do mundo, por Salete Rêgo Barros

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Ei, estamos no big brother brasil (com minúsculas)
16/8/2020

 

Fico sem compreender a polêmica que se instalou, naturalmente, movida por paixões ideológicas, em torno das estatísticas da Covid-19. Uns falam em subnotificação; outros em maxinotificação – é claro que o viés ideológico de cada um permeia as interpretações fantasiosas, que só não conseguem enxergar como corretos, os dados fornecidos pelas secretarias de saúde de estados e municípios.

Desde que o Estado passou a ser demonizado, tudo o que vem dele passa pela corrupção, mentira e incompetência. E foi essa condição que favoreceu o surgimento do salvador da pátria – aquele que iria acabar com a corrupção, privatizar as estatais, para que passassem a dar lucro (como se o objetivo do Estado fosse o lucro e não o bem estar social), e moralizar tudo o que havia de imoral na sociedade brasileira.

Aí chegam as crises sanitária e política – as duas de uma vez. O SUS se revela essencial para dar conta da pandemia, apesar de a pasta da saúde ser administrada por leigos no assunto; o clã Bolsonaro se revela um antro de corrupção, e os que deveriam dar um direcionamento moralista à sociedade corrompida por governos de esquerda, receitam sementes de feijão e cloroquina para curar a “gripezinha”, além de compactuar com a destruição da biodiversidade, entre outros incontáveis absurdos que caracterizam este governo.

Atordoado com tanta confusão, o povo não consegue mais diferenciar o público do privado; não sabe se confia na ciência ou em quem lhe concede um auxílio emergencial de última hora; não compreende o que se esconde por trás de cada movimentação das peças do xadrez, estudada nos mínimos detalhes para enganar, confundir e beneficiar, ainda mais, a já beneficiada parcela de 1% da população brasileira.

Mas o que tudo isso tem a ver com o título desse artigo?

A geladeira pifou – já estava bastante idosa. Aconselhada por minha filha a não me deslocar até as lojas de eletrodomésticos para pesquisar preços, resolvi procurar na internet uma que coubesse no nicho da cozinha e no bolso. Foi aí que veio a surpresa: ao entrar no Facebook, após algumas horas de encerrada a pesquisa, todas as marcas de geladeiras apareceram na minha página me oferecendo descontos, outros produtos que, se comprados juntos, me dariam zilhões de vantagens.

Fiz a conexão na hora: se a tecnologia atual consegue cruzar nossos dados de forma tão eficiente, por que razão as notificações da Covid-19 não seguem o mesmo padrão – cartórios, cemitérios, farmácias, hospitais, redes sociais, etc., todos juntos, cruzando informações confiáveis, gerando dados reais de mortos e contaminados?

A eficiência da tecnologia seria, então, seletiva? Ou o desprezo pelo conhecimento está afetando até os que delem se benefeciam? É melhor baixar a guarda e “dar a César o que é de César”. Do contrário, sairemos totalmente chamuscados dessa espiral destruidora e negacionista em que nos meteram

A perigosa fama das Fúrias

15/8/2020

 

O ano de 2020 entra para a história como um divisor de águas por diversos motivos. Em pouco menos de seis meses, a sociedade norte-americana se torna palco de dois espetáculos de repercussão internacional (entre tantos outros), que colocam no centro do debate a questão do comportamento humano intempestivo, digno das divindades infernais encarregadas de atormentar criminosos – as Fúrias que, na mitologia romana, possuíam asas de morcego e cabelo em forma de serpente. Elas eram fruto da relação conjugal de Hades e Perséfone.

No primeiro episódio, uma nota falsa de 20 dólares desencadeia uma série de atitudes violentas que culminam com o sufocamento de George Floyd por um policial enfurecido, que vê na oportunidade a chance de descarregar a bagagem racista acumulada, ao longo de séculos, no homem negro imobilizado, portanto, sem chance alguma de defesa.

No segundo, um desentendimento por causa de um pedido de desconto nos 8 dólares cobrados por cada café da manhã de uma turma, resulta na fúria da dona do restaurante, que se coloca em defesa de seus funcionários, transformando em cacos o presente recebido do marido no dia de seu aniversário – uma peça do artista plástico e serígrafo recifense, Romero Britto.

Os dois episódios trazem o elemento “dinheiro” como o gatilho da fúria, se bem que, no segundo, o que chama mais atenção é o fato de os funcionários terem sido humilhados pelo artista (no entendimento da mulher).

É precipitada, no momento, a avaliação de qual seria o tipo de bagagem acumulada por uma pessoa que se dispõe a mostrar, com seu gesto, que o artista é indigno de sua própria obra, ao jogar no chão uma peça que valia em torno de trinta mil reais, em sinal de retaliação ao desrespeito sofrido por seus funcionários.

Mas uma coisa é certa: as Fúrias promoveram ainda mais a obra do pernambucano radicado em Miami, um dos artistas mais prestigiados pelas celebridades americanas. Em seu currículo já figuram obras públicas em diversas partes do mundo, além de figuras, que vão de Michael Jackson e Madona a Dilma Rousself, terem adquirido quadros seus.

Como o ser humano é mimetomaníaco, episódios dessa natureza correm o risco da replicação, tendo em vista o resultado obtido: o lucro que chega de forma enviesada, como no caso, através da destruição de uma obra de arte na presença de seu criador (pensem numa humilhação…).

Já o sacrifício de George Floyd trouxe um ganho direto para toda a humanidade: a exposição das mazelas do racismo estrutural e as consequentes ações de combate ao preconceito que, rapidamente, se espalharam.

É nessa dinâmica das relações humanas que se caminha rumo à evolução. Um caminho tortuoso, porém o escolhido dentre tantos outros possíveis. Por mais que se reflita a esse respeito surgem mais perguntas do que respostas para a compreensão da raça humana e seus propósitos.

Acrescente-se à pergunta feita pelos críticos de arte: “Para que serve a obra de arte?”, mais uma resposta: serve para mostrar que as pessoas esperam do artista, atitudes proporcionais à grandiosidade de sua obra.

 

Pronomes possessivos em debate
2/8/2020

De familiares e amigos recebi ontem essa mensagem cheia de boas intenções: paz, amor, saúde e muitas realizações – para mim, minha família e meus amigos, no mês de agosto.

Que me desculpem a sinceridade, amigos e familiares, mas a perspectiva de pronomes possessivos na primeira pessoa não encontrará eco se, realmente, quisermos viver com paz, amor, saúde e muitas realizações.

Um mundo melhor está sendo cogitado no pós-pandemia, após o coronavírus comprovar que uma ação isolada pode contaminar o mundo inteiro, desmantelar a economia mais forte do planeta e provocar milhões de mortes que poderiam ter sido evitadas – o coronavírus, sim, essa coisa invisível que roubou a paz, a saúde, o amor e as realizações dos seres humanos, egoístas o suficiente para destruir a biodiversidade em nome do progresso; provocar a desigualdade social escravizando o próprio semelhante; manter a sua felicidade à custa da infelicidade do outro.

Somente a perspectiva da continuidade desta vida no pós-morte é o que dá sentido à existência humana. Do contrário, como “sorrir quando tudo terminar, quando nada mais restar dos dias tristonhos”? A história julgará os culpados pela morte precoce e pela vida destroçada de milhões de pessoas que foram jogadas nas ruas, dependentes da caridade alheia e das migalhas disponibilizadas pelo governo. Mas… E como ficarão os que perderam a vida?

O deus do Novo Testamento, que nos apresentaram como sendo um pai bom e protetor, parece mais com aquele deus vingativo e mau do Velho Testamento, que castiga os filhos mal-comportados. Há quem ainda não aprendeu com a lição da pandemia, e continuará sem enxergar o óbvio alimentando seus desejos mais supérfluos como se não houvesse amanhã. Para esses, desejo um agosto de grandes revelações e aprendizado, através do reconhecimento do egoísmo e da incompetência com que a pandemia está sendo administrada em nosso país. Desejo, também, que seja feita uma reflexão: quantas mortes teriam sido evitadas, se o povo tivesse uma Educação de qualidade, suficiente para fazer uma leitura crítica de mundo, e soubesse escolher melhor os seus representantes?

É urgente que os setores formadores de opinião saiam do modo “permissão” e se liguem no modo “ação”; que os pronomes possessivos saiam do singular em direção ao plural, e incluam no discurso todos os elementos aos quais se referem.

Salete Rêgo Barros
Cidadã do mundo

Por ocasião do Dia dos avós

26/7/2020

 

“Com os idosos está a sabedoria,

e na abundancia de dias o entendimento” (Jó 12:12).

 

A data que lembra a importância dos avós, 26 de julho, vem ganhando força ano após ano, e tem origem cristã – foi escolhida pelo papa Paulo VI para homenagear os avós maternos de Jesus, Ana e Joaquim.

Este ano, especialmente, a data ganha novos ares, quando as esperanças são renovadas e as emoções proporcionadas pelas demonstrações de afeto anunciam que um novo tempo em breve surgirá.

O distanciamento social imposto pela pandemia torna a convivência entre avós e netos o fruto proibido, aquele que é sempre o mais cobiçado. Este curto período de tempo vem possibilitando uma avaliação nas formas de comportamento e convivência, até então tidas como normais, apesar de se mostrarem anormais se enxergadas a partir de um olhar mais reflexivo.

Para várias culturas, o envelhecimento é recebido como uma dádiva que representa a sabedoria, e cabe aos anciãos o compartilhamento do conhecimento com os mais jovens. Eles são reverenciados, cuidados, respeitados e amados por toda a comunidade.

Exemplos inclusivos demonstram que as vidas dos que já não podem mais participar ativamente do mercado de trabalho importam muito. É graças ao trabalho, à pesquisa e aos ensinamentos dos que, no passado, participaram ativamente da produção da riqueza da nação que as gerações seguintes se beneficiam das conquistas anteriores no campo da ciência, tecnologia, educação, arte e cultura. Enxergar essa verdade é acreditar no próprio futuro.

No entanto, apesar das obviedades demonstradas através do tempo, tentativas de negá-las com a destruição de conquistas sociais que trazem segurança e tranquilidade aos aposentados são articuladas por setores conservadores, que agem como se temessem a própria felicidade e a do outro.

Estranhamente, o discurso do ódio vem ganhando adeptos que navegam no barco da ignorância alimentada por promessas vãs. Atribuir a Jesus a cura de doenças e a resolução de problemas pessoais, mediante doações para certas igrejas evangélicas, é um ato criminoso com respaldo jurídico, já que não é tomada qualquer providência para coibir tais absurdos. Vale salientar que, em 10 anos, o aumento do número de idosos que comparece às igrejas evangélicas é de 61,45%, segundo dados do IBGE.

Atribuir a remédios sem eficácia comprovada para a Covid-19, com respaldo do Ministério da Saúde, a cura da doença que vem matando, apenas no Brasil, perto de 90.000 pessoas, das quais 71,4% tinham mais de 60 anos, é crime de responsabilidade, dizem os juristas. No entanto, até o momento, nada foi feito para coibir tal absurdo.

Na data em que é comemorado o Dia dos avós, numa referência aos avós maternos de Jesus, é bom que se reflita a respeito do que está sendo feito em relação à violência, ao descaso do setor público, à negligência de parentes e ao desrespeito a esses avós que, um dia, também foram crianças, jovens e adultos produtivos, antes de chegarem à velhice.

É bom que se reflita, também, a respeito da distorção das mensagens do Cristo que está sendo feita por aqueles que alienam pessoas vulneráveis prometendo-lhes a solução de problemas pessoais em troca de depósitos bancários, doações e sacrifícios.

O nome de Deus é utilizado para encobrir o verdadeiro motivo dos problemas que afligem a maioria da população – desemprego, violência, doença, falta de uma moradia digna e de um pedaço de terra para plantar; falta de educação de qualidade e de oportunidades, entre tantos outros.

A caridade é estimulada e amplamente divulgada pela mídia vendida, quando, na verdade, é dever do Estado promover o sustento da população que se torna vulnerável pela ausência do próprio Estado, e que não pode se dar ao luxo de ficar em casa, sem trabalhar, durante a pandemia.

É preciso que tudo o que está acontecendo seja analisado e enxergado com espírito crítico, sem dogmatismos, sem paixões, sem idolatrias. Para que se chegue ao entendimento da situação é preciso que se revisite a história, não somente aquela contada pelos vencedores, mas também a contada pelos vencidos.

Ninguém espere encontrar na mídia convencional uma narrativa que bata de frente com os interesses de seus patrocinadores. Portanto, é preciso que os canais alternativos e independentes sejam acessados em busca de mais perguntas do que mesmo de respostas.

Na sabedoria dos avós e na abundância dos dias haverá o encontro com o conhecimento e com a verdade que nos libertará do caos. Somente dessa forma teremos coragem para expor o nosso pensamento, as nossas ideias, e condições para sairmos dessa zona de conforto genocida.

 

O feitor e a lealdade perversa

23/7/2020

 

Capítulos mal escritos do seriado do desmantelo relatam que a extinção do Ministério da Cultura – MinC, criado em 15 de março de 1985, deu-se mais uma vez em 2 de janeiro de 2019, exatamente um dia após tomar posse o atual governo, passando a ser Secretaria de Cultura subordinada ao Ministério da Cidadania e, em novembro do mesmo ano, ao Ministério do Turismo. Cinco secretários (Henrique Pires, Ricardo Braga, Roberto Alvim, Regina Duarte e Mário Frias) já passaram em um ano e meio, pela secretaria, e outros capítulos do que restou de uma das pastas mais importantes do Estado brasileiro, já foram rascunhados. A Secretaria não tem autoridade simbólica para representar o país, como tinha o Ministério, responsável por planejar, coordenar e supervisionar atividades culturais, formular políticas públicas para o setor e proteger o patrimônio histórico nacional.

O mais recente capítulo traz a seguinte epígrafe: “Tenho um outro patrão. E não adianta: o patrão quer uma linha estética. E essa linha estética vai ser privilegiada” – palavras de Mário Frias, empossado Secretário especial de Cultura há pouco mais de um mês. Dois dias após a sua nomeação, o ator de Malhação da TV Globo exonera o servidor de carreira do extinto MinC, Odecir Luiz Prata, diretor do Departamento de Fomento Indireto da Secretaria Nacional de Fomento e Incentivo à Cultura (SEFIC) – subpasta responsável pela aplicação da Lei Rouanet. Prata é apontado por funcionários e produtores culturais como um dos mais competentes quadros técnicos da Cultura.

Não é difícil adivinhar qual seja a linha estética do patrão de Frias – que dá continuidade à fria sem precedentes em que se meteu o setor cultural. Resta saber em qual século ficou estacionado o conceito de estética que norteará a aprovação dos projetos pleiteados pelo setor, e se o direito à fruição da arte continuará sendo para todos, pelo menos na teoria.

A dinâmica da caminhada da humanidade rumo à perfeição, e a das relações do homem com seu meio sociocultural influencia conceitos que, na atualidade, já não são mais os mesmos daqueles em que a beleza, o bem e a verdade estavam inseridos numa estética própria da época. Por motivos óbvios, a estética das obras de arte exibidas nas paredes do Palácio do Planalto difere da estética do Alto do Moura, em Caruaru, ou da Bomba do Hemetério, no Recife.

Então, o recado está dado: o conceito de estética do patrão de Frias não pode ser o mesmo do produtor cultural que submete à Lei Rouanet um projeto com vistas à autorização para captação de recursos através da renúncia fiscal das empresas, com a finalidade de promover o bem-estar de todos e não, apenas, de uma única classe social.

A arte do nosso tempo tem a ver com as condições econômicas, sociais e culturais que a geram, e a cadeia produtiva do setor faz com que a economia criativa se realize plenamente através do trabalho incessante de centenas de milhares de trabalhadores envolvidos com a construção de casas de espetáculo, fabricação de instrumentos musicais, equipamentos de som, figurino, alimentação, restaurantes, hotelaria, com o vendedor de pipoca e amendoim em frente ao teatro, além dos artistas, gráficas, editoras, etc., etc., etc.

Quando o subsídio vem diretamente do governo, isso significa que vem dos impostos pagos pelo povo que, na maioria das vezes, não pode se beneficiar dos prazeres estéticos que a arte proporciona. Infelizmente, esta é a realidade brasileira atual, mantida por um projeto conservador, em todos os sentidos, principalmente no que diz respeito à desqualificação do conhecimento e da criatividade que ameaçam a hegemonia do poder, por terem inerentes ao seu conteúdo elementos emancipatórios e humanizadores.

Tal qual o sabão em pó, que lava as roupas sujas deixando-as bem limpas, a arte em suas variadas formas está a serviço, também, da lavagem do dinheiro sujo proveniente de falcatruas que assaltam os cofres públicos, das falsificações e do plágio. Nesta perversão a sua essência é totalmente distorcida e desvinculada do sentido de comunhão entre as pessoas unidas em torno da expressão de sentimentos nunca antes experimentados, independentemente de espaço e tempo, através do que a literatura, a música, a dança, a escultura, a pintura, a fotografia, o cinema ou o teatro possam comunicar.

O mais recente capítulo mal escrito desse seriado deixa claro o retrocesso e a fidelidade perversa que coloca o secretário-ator no papel de feitor de escravos, tal qual se via nos folhetins do período escravocrata – página da nossa história que ainda não conseguimos virar.

 

A Covid-19 e a metáfora dos coágulos

20/7/2020

 

Nos últimos meses, o conhecimento científico vem sendo afrontado pela complexidade da doença causada pelo coronavírus, a Covid-19, e pela proliferação do charlatanismo, que vai da prescrição de sementes milagrosas e água benta a remédios sem eficácia ainda comprovada pela ciência.

Entre as surpresas trazidas pela nova doença estão os coágulos que afetam, além do sistema respiratório, coração, fígado, rins, cérebro e artérias, causando amputações de membros, infartos e AVC’s com consequências fatais.

Ainda não está claro se os coágulos que surgem, até em pacientes que recebem  anticoagulantes, são causados pelo vírus ou se são uma resposta do sistema imunológico ao ataque do vírus. A grande quantidade de coágulos sugere que o corpo procura o equilíbrio entre coagular e sangrar.

Diante do quadro surpreendente, ameaçador e desafiador da pandemia, que impacta diretamente na vida das pessoas e na economia do país, não há como abrir mão dos conhecimentos básicos sobre o funcionamento do corpo humano, e fazer uma comparação com o do corpo social. Assim como o primeiro precisa que o sangue irrigue por igual todos os seus órgãos, para que permaneçam saudáveis, o segundo precisa que a economia circule por todas as suas camadas, para que permaneçam bem nutridas sob o ponto de vista do bem-estar social.

Sempre que os coágulos impedem a circulação do sangue, que leva os nutrientes e o oxigênio aos órgãos, as partes afetadas adoecem prejudicando o funcionamento pleno do organismo inteiro. Dessa mesma forma acontece com o corpo social – coágulos figuram como barreiras colocadas em vários pontos do tecido social, impedindo que a economia circule de forma equilibrada e uniforme, com prejuízo para o bom funcionamento de todos os setores da sociedade.

Utilizados para uma melhor compreensão de temas complexos, os trocadilhos facilitam o entendimento de qualquer pessoa, por mais simples que seja. Portanto, comparar coágulos a pessoas que bloqueiam a circulação da riqueza da nação de forma equilibrada, é enxergar o quão danosos podem ser os coágulos que impedem as pessoas (células) de serem alimentadas de forma adequada, no sentido amplo – física, intelectual, cultural e moralmente.

Uma sociedade adoecida, como é o caso da brasileira, é refém dos coágulos que representam os que monopolizam grandes fortunas impedindo que o sangue (a riqueza) circule, irrigando todas as células de acordo com as suas necessidades, para que se mantenham saudáveis.

O corpo inteiro seria beneficiado pela ausência dos coágulos, que aqui representam uma parcela mínima da população que acumula a riqueza produzida pela maioria. Estagnada, essa riqueza impede o bem-estar do corpo inteiro, conduzindo-o à falência múltipla – da biodiversidade, da educação, da cultura, da saúde, enfim, de áreas estratégicas correspondentes a órgãos vitais como fígado, rins, coração e pulmões.

O Estado brasileiro, aqui representado pelo cérebro humano, é o órgão que deveria dar as diretrizes e estabilidade ao corpo, permitindo que a gestão do dinheiro público (o coração) fizesse chegar até os demais órgãos, as condições que mantêm o bem-estar social. No entanto, o comprometimento não é com o bem-estar geral do corpo social, mas sim com aquela parcela mínima que representa, apenas, 1% da população – os coágulos bloqueadores da circulação das riquezas produzidas pela nação.

Este tipo de comportamento diz muito do grau de evolução moral e espiritual da humanidade. A ganância e o egoísmo preponderam sobre a solidariedade e o coletivismo – atitudes incompatíveis com a inteligência. A acumulação de bens materiais (os coágulos) anda na contramão do bom-senso e pode ser representada como o paradoxo da água e do diamante.

A verdadeira riqueza, a que alimenta o nosso corpo e nos dá condições de permanência no planeta, é produzida pelo trabalhador que paga ao Estado, em forma de impostos, uma fatia enorme de sua força de trabalho. Um corpo social saudável precisaria ter, prioritariamente, as suas necessidades básicas atendidas de forma plena – alimentação, educação e cultura, moradia, saúde, trabalho e segurança. Garantidos estes itens para todos, os desejos poderiam ser inseridos com a devida parcimônia, se observados os cuidados com as questões ambientais.

O combate à corrupção, remédio para todos os males dos discursos politiqueiros, não vai curar o corpo social, porque ela (a corrupção) não é causa, mas sim consequência da ganância e do egoísmo do ser humano. Portanto, somente a conscientização que se dá por meio do conhecimento é a forma eficaz de se combater os elementos causadores das distorções do comportamento humano, entre elas a corrupção e a promoção da desigualdade social, que adoecem e ceifam vidas humanas.

 

A contaminação dos rótulos

6/7/2020

 

Rotulamos para caracterizar algo, positiva ou negativamente – embalagens, pessoas, empresas, movimentos, etc. Com o passar do tempo, novas características vão sendo acrescidas aos rótulos, enriquecendo ou empobrecendo as suas atribuições ao sabor das interpretações e qualificações simplistas feitas, muitas vezes, inadequadamente.

A mensagem original passada pelo rótulo poderá chegar a tal ponto de distorção, seja para mais ou para menos, que a sua imagem se tornará inviável, obsoleta e ultrapassada. É o que vem acontecendo com os rótulos de “direita” – caracterizando os favoráveis ao sistema capitalista, e de “esquerda” – os adeptos do socialismo.

A pandemia nos leva a uma encruzilhada que inviabiliza o velho capitalismo, reacendendo os antigos ideais socialistas, estabelecidos por comunidades primitivas, sem precisar de rótulos, por ser este o estado natural do ser humano comunitário.

Há pouco mais de um século, a inquietação causada pela injustiça social provocada pelo capitalismo leva um grupo de pensadores a propor mudanças radicais, no sistema vigente, impostas através de instrumentos autoritários, em algumas partes do mundo. No entanto, com o decorrer do tempo, o modelo se mostra insatisfatório, por diversos motivos, entre eles: distorções ideológicas, restrições das liberdades e sede de poder, presente em seres humanos, ainda, a caminho da evolução.

A prática socialista, com suas bases fincadas no bem-estar da coletividade, requer uma boa dose de desapego, para o qual poucos se mostram preparados. Há séculos, a divisão de classes entre exploradores e explorados vem se consolidando. Os que desta divisão se beneficiam cuidam de contaminar o rótulo, ao qual foi originalmente atribuída a solidariedade, temendo mudanças que poderão trazer perda de suas benesses. Estes não pretendem sair da zona de conforto inócua, que serve unicamente aos interesses individuais, enquanto que os outros (os explorados), em sua maioria, destituídos do senso crítico sonegado por uma educação de má qualidade, também se acomodam em suas zonas de conforto estrategicamente alimentadas e fortalecidas pelo discurso explorador.

A bandeira da corrupção serve muito mais para contaminar rótulos, do que para punir os infratores e corrigir um dos problemas estruturais mais graves, existentes em nossa sociedade; também serve muito bem aos discursos politiqueiros oportunistas, assim como para amordaçar as manifestações de indignação e descontentamento, dos que anseiam por mudanças benéficas à população.

Atender aos interesses de uma minoria, que se acha no direito de se apossar das riquezas produzidas pelo trabalho da maioria, é o propósito que levanta a bandeira do combate à corrupção, para resolver todos os problemas da nação brasileira, como se fosse a corrupção o maior deles. Na contramão deste pensamento está o de cientistas políticos que, unanimemente, afirmam que o maior problema do Brasil é a desigualdade social.

Fantasiados de honestos, fariseus se apoderam dos símbolos nacionais e de um discurso que agrada em cheio aos desavisados, analfabetos políticos e funcionais. Dessa forma, levam o país ao caos com falsas bandeiras. O silêncio e a acomodação dos setores que, no passado, lutaram bravamente pela redemocratização – movimentos estudantis, intelectuais, esportistas e a classe artística, de certa forma decepcionados com os desacertos dos últimos anos, perplexos e anestesiados veem a banda passar, permitindo que o desmonte do país aconteça.

Se comparado o mal causado por quem rouba por revolta contra as injustiças ou para satisfação de desejos e necessidades, com o mal causado pela sede de ter e poder de quem visa, apenas, acumular riquezas, teremos um cenário genocida montado com a posse indevida do dinheiro público, que deixa de ser aplicado na educação, na saúde, na segurança, enfim, no bem-estar social, causando mortes, violência, dor e sofrimento para toda a sociedade.

Estas e outras mais são questões trazidas pela pandemia, a serem refletidas independentemente de rótulos. Que seja desenhada uma proposta inteligente e viável, para um roteiro que nos conduza por caminhos livres de rótulos contaminados, e que seja bom para todos. De que serve uma rota bem traçada para poucos, boa para alguns e péssima para a maioria, se estamos todos num só barco, prestes a naufragar? As chances de a embarcação chegar ao céu ou ao inferno estão nas mãos do timoneiro.

Esse conceito religioso, que nos foi ensinado, está ligado a um lugar subjetivo, para onde iremos no pós-morte, como prêmio ou castigo por nossas ações. No entanto, prefiro abdicar dessa possibilidade – ela poderá ou não se concretizar, a depender do humor dos guardiões do Éden e do submundo. Prefiro imaginar céu e inferno como estados puros de consciência, que poderão se estabelecer independentemente dos aparatos físicos da matéria, neste ou em outro mundo – pouco importa.

Como lidar com esses estados de consciência, livres dos grilhões da ignorância, só depende de cada um – o famoso livre arbítrio é o que selará os destinos da humanidade.

O quintal e a rede

5 de julho de 2020 (oitavo aniversário da CN)

 

Dois dos elementos preservados na memória afetiva do povo nordestino – um quintal e uma rede – estão presentes, também, na memória dos que frequentam o quintal da Cultura Nordestina, e dos integrantes da Rede de Associados Letras & Artes – LETRART. 

O Espaço está atualmente  localizado na capital pernambucana, no Poço da Panela, bairro tradicional, bucólico e acolhedor em sua arquitetura colonial do século 19, ainda preservada, apesar da grande especulação imobiliária local. As festas de rua no pátio da Igreja, o comércio varejista de bairro, presente nas vendinhas e nos ateliês dos artistas plásticos, entre outras características, fazem do Poço um oásis dentro do caótico aglomerado urbano, em que se transformou a cidade do Recife.

Na maioria das casas nordestinas, além de uma rede para embalar sonhos, os espaços de convivência preferidos por familiares e amigos eram sempre o terraço de trás e o quintal, que funcionavam como extensão da cozinha, onde todos se reuniam em torno dos aromas, cores e sabores da culinária regional, para conversar, contar histórias, cantar, tocar, festejar as datas do calendário cultural, comemorar aniversários, bodas, etc. 

Reproduzir esses costumes com todos os seus encantos é um dos objetivos da gestão da Cultura Nordestina, espaço reconhecido em 2016, pelo Ministério da Cultura, como Ponto de Cultura, onde o coletivo/entidade desenvolve e articula atividades culturais com a comunidade, e contribui para o acesso, proteção e promoção dos direitos, da cidadania e da diversidade cultural no Brasil. 

Além dessa busca pelas raízes culturais, responsáveis pela identidade do povo nordestino, a Rede mantém, através de seus núcleos de atuação, uma programação extensa que inclui atividades comemorativas do calendário cultural, cursos, oficinas, encontros e eventos acessíveis a todos, dado o caráter humanizador, transformador e emancipador que a arte possui.

Em oito anos de atividades ininterruptas, nas áreas de produção cultural, educacional e artística, são desenvolvidos e realizados vários projetos e programas, cursos e oficinas, por aqueles que embalam seus sonhos na Rede de Associados Letras & Artes. 

A oficina literária Clarice Lispector, que se reúne semanalmente, estuda  a obra de autores escolhidos pelo grupo. Para o público infantojuvenil, O fio da meada – artes e ofícios (oficinas de artes), Semear letras & artes (oficinas de literatura e história da arte), O lúdico na arte (colônia de férias) e Abril de Monteiro Lobato (contação de histórias). Para todas as idades, o FELIPPA – Feira literária do Poço da Panela, ainda a executar, e um serviço de divulgação oferecido aos escritores, que promove vida e obra de um escritor a cada mês, na página do Facebook – Destaque literário, em atividade desde março de 2018. Dele já participaram, até o momento, 25 escritores. 

O programa mais antigo é o Sarau lítero-musical, realizado mensalmente, que teve seu início em setembro/2012, interrompido, apenas, em março/2020 pela pandemia do novo coronavírus. Música e apresentações performáticas têm como palco o quintal da Cultura Nordestina, para deleite dos participantes que se apresentam e comemoram datas importantes do calendário e os aniversariantes do mês, saboreando as delícias de nossa culinária regional.  

Outros programas sofreram descontinuidade por diversos motivos – impossibilidade dos coordenadores, ausência de público suficiente, e falta de recursos financeiros. Entre eles, os programas de palestras Café, cultura e afeto, Sextas culturais e Eclosão. Os programas mensais Café com cordel e Almoço musical (aos sábados), também não sobreviveram.  

Há os que acontecem esporadicamente, como os cursos de francês e gramática a serviço da e produção textual, e outros  semestralmente: Trilhas do conhecimento e Teatro lido; anualmente: Mulher Vida X Arte, Trabalho Vida X Arte, Culturinha na folia, Culturinha junina, Anunciando o Natal no Poço da Panela, além das comemorações do Dia dos povos indígenas, Dia do folclore e da Consciência negra.

 

Expansão das atividades e parcerias

A pesquisadora e coordenadora do Núcleo de Educação da LETRART, Suzana Cavalcanti, professora emérita da Universidade de Pernambuco (UPE), entende as práticas desenvolvidas no espaço (Cultura Nordestina), pelos integrantes da Rede (escritores, artistas, professores, intelectuais e pensadores), como um projeto educacional a ser expandido, já que a cultura e a arte estão postas como instrumentos facilitadores da compreensão da realidade, discutidas e produzidas muito além do caráter mercadológico, nas atividades desenvolvidas na Cultura Nordestina.

A partir deste entendimento, a pesquisadora propõe a realização de um projeto de pesquisa mais abrangente: Educação, filosofia e humanidade: a cultura e a arte como motor da história – as experiências educativas da Rede de Associados Letras & Artes.

 O projeto será formalizado com vistas à sua execução, mediante captação dos recursos necessários, que possibilitarão a expansão das atividades não-formais, já realizadas no Espaço, para toda a Rede pública de ensino. 

A pesquisa tem como objetivo contribuir para o estudo da realidade sociocultural, que envolve os fazeres da Instituição nos campos da educação, arte e cultura, na construção de uma proposta pedagógica mais consistente, que repense as finalidades dos processos educativos face aos desafios do clima cultural existente no bairro, apesar de todos os seus contrastes sociais. Trata-se, pois, de uma grande oportunidade para a aquisição de conhecimentos fundados na tradição que, certamente, despertarão o sentimento de pertencimento da comunidade, fundamental ao desenvolvimento de uma sociedade sadia e participativa.

A professora Raldianny Pereira, através da Pró-reitoria de extensão e cultura da Universidade Federal de Pernambuco, propõe uma parceria com o Ponto de Cultura Nordestina e a Rede de Associados Letras & Artes, para a execução do projeto de extensão a ser realizado no âmbito da disciplina eletiva Escrita criativa, do curso Comunicação Social da UFPE. 

Entre as justificativas do projeto a ser realizado, a partir da criação de um blog – Escrita criativa: coletivo de produções artisticas, estão a da arte como um direito humano em suas variadas linguagens, suportes e manifestações, não apenas no sentido da fruição, mas também da produção. 

O entendimento da professora é o de que a comunicação, intrínseca à arte, é mantenedora da educação desejável, que tem se mostrado transformadora, libertadora e emancipatória, vista dessa forma por todos os setores envolvidos. 

O blog visa atender, não apenas a produção textual dos alunos dos cursos de comunicação da UFPE (Jornalismo, Publicidade e Propaganda, Rádio, TV, Internet e Cinema), mas também a de leitores, escritores, aspirantes a escritor, artistas, e da sociedade como um todo.

A parceria inclui discussões sobre o projeto, realização de atividades em conjunto – oficinas de leitura, seminários e produção de material para postagem no blog (textos, fotos, vídeos e áudios).

Outra parceria importante foi estabelecida com o Portal de Artes – academia de produção áudio visual -, através da realização de cursos presenciais e semipresenciais (vídeo-aulas), nas áreas de abrangência já consolidadas pela Rede de Associados.

Os projetos apresentados pelas professoras Suzana Cavalcanti (UPE), Raldiany Pereira (UFPE), e pelo produtor cinematográfico Paulo Lins (Portal de Artes) vêm enriquecer com respaldo acadêmico, o trabalho realizado na Cultura Nordestina, durante esses 8 anos, além de reafirmar a convicção de que, além de serem arte,  educação e cultura, direitos humanos, são também os eixos de uma sociedade inclusiva, participativa e emancipada.

Nas ações implementadas pelo coletivo Cultura Nordestina & LETRART, estarão presentes o estreitamento dos laços e do diálogo entre a universidade e a sociedade, através do estabelecimento dessas e de outras promissoras parcerias.

 

A verdade impressa em Súplica ao Sol… era outono, de Ivanilde Morais de Gusmão

4/7/2020

Pela oportunidade de degustar precocemente a publicação mais recente da professora Ivanilde Morais de Gusmão, fico agradecida e sensibilizada. Fruto colhido após vasta semeadura intelectual, este pode ser considerado um livro esteticamente bem estruturado com o padrão da Edições Novo Horizonte, sob a coordenação das escritoras Lourdes e Raphaela Nicácio. 

A capa é um convite irresistível à apreciação do livro. O impacto das primeiras páginas se dá através das fotografias pertencentes ao acervo de Ivanilde, que traduzem a sua emoção ao visitar o museu e o mausoléu do filósofo alemão Karl Marx, presença constante nas entrelinhas das 347 páginas que se seguem. 

A formação marxiana da autora garante à sua escrita um caráter reflexivo, consolidado nos gêneros literários dominados por ela, com características únicas e especiais encontradas na construção de seus poemas.

A verdade impressa em imagens de momentos, que não se repetirão jamais, e em palavras arrancadas das profundezas de uma alma nobre, é o legado da vida que se inicia com uma perda irreparável, descrita através do sentimento de orfandade, encontrado na figura da menina encolhida embaixo do caixão, que guarda o corpo de sua mãe. 

Esta verdade carregada pela mulher, em suas entranhas, torna-a apta a entender, com propriedade, a injustiça social e a orfandade do povo trabalhador, que se vê expropriado e vilipendiado por um sistema que exclui e maltrata, assim como a vida a maltratou durante tanto tempo. 

É bem provável que venha daí a identificação de Ivanilde com o filósofo que dedicou à vida, entre acertos e erros, ao combate da orfandade do ser humano, e ao entendimento de que a busca pela humanização, pela justiça e pelo reconhecimento, é o que nos faz pertencer à mesma família – a família dos humanos, que tem uma mãe em comum – a Mãe Terra. 

Resiliência, superação, determinação e esperança são palavras sempre presentes no vocabulário da autora. No entanto, em algumas passagens do livro em análise, podem ser observadas outras mais relacionadas ao clima de desesperança causado pela pandemia, e sublinhadas pela proximidade da finitude do ser humano, constatada nas estatísticas diárias, nas atitudes e nos pronunciamentos desastrosos dos que deveriam proteger vidas, e não destruí-las.  

Confesso que ainda não li o livro todo, detalhadamente. No entanto, creio que o passeio por todas as suas páginas, com várias paradas, acrescido às conversas com a autora, nas Tardes de reflexões filosóficas, na Cultura Nordestina, possibilitam este comentário movido pela emoção de quem enxerga a verdade contida em cada imagem e em cada palavra escrita, dedicadas às gerações futuras, publicadas como um tesouro a ser desvelado por quem tiver a sorte de encontrá-lo, num mundo regido por incertezas e inverdades, mas com grandes possibilidades de transformação e humanização.   

 

Milagres acontecem

3 de julho de 2020

 

A Vila de Cimbres, originalmente conhecida como Aldeia de Arorobá, localiza-se em cima da extensa serra de Ororubá, colonizada pelos jesuítas interessados na catequese dos índios xucurus e paratiós, que habitavam a localidade. Mais tarde, a vila deu origem à cidade de Pesqueira, no Estado de Pernambuco, que apresentava uma característica rara no Agreste do início do século XX: a industrialização de doces e beneficiamento de tomates.

Em 1890, o Brasil era presidido pelo marechal Deodoro da Fonseca que, através de um golpe militar, pôs fim ao Império do Brasil, depondo o então imperador Dom Pedro II e proclamando a atual forma de governo – o presidencialismo.

Neste contexto histórico nascia, na Vila de Cimbres, no dia 3 de julho de 1890, o caçula de 19 filhos de um casal igual a tantos outros – ele, agricultor; ela, dona de casa. Ainda na infância, o menino Raul do Rêgo Barros ficou órfão de pai e mãe, e se viu separado dos irmãos, que foram se acomodando em casas de parentes e amigos sensibilizados com a situação dos órfãos. Raul ficou sob a guarda do irmão mais velho, Possidônio Pôncio do Rêgo Barros, já bacharel em Direito. Os dois nunca mais tiveram notícias da maioria dos outros irmãos.

Em 1918, casado e com um filho de pouco mais de um ano, Raul contraiu a gripe espanhola, pandemia que matou entre 50 e 100 mil pessoas no mundo inteiro. Ficou tuberculoso e foi condenado, pelos médicos, a três meses de vida. Ouvi, inúmeras vezes, essa história contada por ele mesmo, que contrariou todos os prognósticos da medicina da época. No entanto, sobreviveu à doença, milagrosamente, e faleceu aos 95 anos, de falência múltipla dos órgãos. A única sequela que ficou foi a perda definitiva do olfato. E sempre que fazia um raio X, a cicatriz no lado esquerdo do pulmão estava lá, e ele precisava repetir a inacreditável história aos médicos.

Na época da pandemia do século XX, meus avós moravam no Recife. Seguindo as recomendações médicas, instalaram-se em uma das propriedades de meu bisavô materno, no município de Vitória de Santo Antão-PE, para que o tratamento pudesse ser feito de forma adequada – ar puro, gemada em jejum, e uma alimentação reforçada.

Como a maioria das famílias da época, meus avós eram católicos fervorosos, praticantes e devotos de santos, entre eles, São Luiz de Gonzaga, a quem foi feita uma promessa: caso meu avô fosse curado, eles trocariam o nome da propriedade, de Mellos, para Sítio São Luiz.

Na ânsia da cura, meu avô invocava constantemente a mãe de Jesus. Logo às primeiras horas da manhã de certo dia, ele sentiu o calor de uma mão em sua testa. Abriu os olhos, achando que era minha avó verificando sua temperatura, mas o que viu foi uma mulher luminosa que, logo em seguida, desapareceu, enquanto sua esposa ainda dormia.

A partir daí a febre cessou, e ele se restabeleceu completamente. Aos poucos, a vida foi voltando à normalidade; uma casa confortável foi construída, e eles se fixaram definitivamente no campo. Só tiveram dois filhos – meu tio e minha mãe, que estudavam em colégios internos, e só voltavam ao Sítio São Luiz durante as férias.

Em 6 de agosto de 1936, na Vila de Cimbres, duas garotas – Maria da Conceição, 16, e Maria da Luz, 13, conversavam sobre o que fariam caso os cangaceiros voltassem, quando a mais nova afirmou que, se isso acontecesse, Nossa Senhora as protegeriam. E, pela primeira vez, perto de uma pedra, uma figura descrita como luminosa, apareceu. Quando as meninas perguntaram o nome da aparição, ela respondeu: “Eu sou a graça”. A partir daí, mais de 40 vezes Nossa Senhora das Graças apareceu no local. Os pesquisadores pediram um sinal, para que as pessoas acreditassem nas aparições. Desde então, começou a sair água de dentro da pedra, como uma fonte, o que acontece até os dias de hoje.

Meu avô era um contador de histórias. Deitada com ele, na rede, ouvi estas e muitas outras, inclusive a do parente importante – o Conde da Boa Vista, Francisco do Rêgo Barros, que foi presidente da Província de Pernambuco até 1844. Educado em Paris, modernizou o Recife com importantes transformações materiais e culturais. Mandou buscar engenheiros franceses de renome, incentivou as artes e as ciências, levando o Recife ao conceito das grandes cidades modernas da época. Faleceu em 1870, no dia 4 de outubro, em sua residência situada no número 405 da Rua da Aurora, onde está localizada, hoje, a Secretaria de Segurança Pública de Pernambuco.

No momento, vivemos a pandemia do século XXI, também causada por uma gripe semelhante à vivida por meu avô, há um pouco mais de 100 anos. Por um milagre, a minha existência não foi inviabilizada, para que eu pudesse fazer esta pequena homenagem ao meu querido e inesquecível avô-pai, Raul do Rêgo Barros, no dia em que ele completaria 130 anos.

Agora, a contadora de histórias sou eu.

Novos rumos para o setor cultural

28/6/2020

 

Lá se vão 53 anos, após a primeira transmissão de TV, ao vivo, pelo canal inglês BBC unido a emissoras de 26 países, para uma apresentação do grupo The Beatles, no dia 25 de junho de 1967.

Em 27 de junho de 2020, no Poço da Panela, no Recife, acompanhamos montagem e transmissão, ao vivo, da apresentação de Nerynho do forró com a banda “Os caçulas”, e bate-papo com Taciana Valença, nos intervalos, através dos canais de comunicação modernos – alternativa imposta pela pandemia, para que o setor cultural sobreviva com um mínimo de dignidade.

A reinvenção é a palavra de ordem – o terraço da Cultura Nordestina foi decorado, na véspera, com enfeites juninos de anos anteriores, com criatividade e a colaboração de Eugênia Menezes, vice-presidenta da Rede de Associados Letras & Artes – LETRART.

O cenário pretendia trazer um público emocionado e encantado para dentro da festa, através das telas de seus equipamentos. E foi o que aconteceu: curtidas e mensagens carinhosas substituíram as palmas, tão necessárias ao reconhecimento dos artistas do palco; o cachê solidário, depositado na conta do grupo, trouxe um pouco de alento às suas finanças.

Apesar de vital, o setor cultural não é considerado como essencial. No entanto, a parafernália necessária à realização da tal “live” chama a atenção de quem acompanha a movimentação, pela complexidade da cadeia produtiva, invisível para os que estão do outro lado das telinhas – do transporte público e particular, à indústria e comércio de alimentos, de equipamentos eletrônicos e musicais, papelaria, produção artística, entre tantos outros.

Tudo isso faz movimentar a economia, demonstrando que o setor cultural é sim, essencial – talvez não haja interesse para que ele seja reconhecido como tal. Afinal, este é o setor que traz consciência a quem dele se beneficia, e traz implícita a tão temida verdade, em suas manifestações artísticas.

Diante deste quadro de novas possibilidades e tantas impossibilidades, jamais imaginadas, as reflexões também surgem como forma de reconhecimento da importância do calor humano e das consequências, a médio e longo prazo, do isolamento que afasta o artista do público; o aposentado do ambiente de trabalho; o idoso do convívio social, entre tantos outros impedimentos que isolam os seres humanos uns dos outros, e que geram lacunas de ordem emocional, traduzidas em adoecimento do corpo e da mente.

Foi notável o avanço tecnológico durante e após as crises provocadas pelas pandemias e pelos grandes conflitos mundiais. Certamente, a crise gerada pela pandemia do novo coronavirus trará grandes avanços na fruição da arte, nas formas de relacionamento e no reconhecimento do que é, realmente, essencial.

Pátria amada de (des)encantos mil

27/6/2020

Diariamente, o pé fora da cama já vem acompanhado por uma interjeição de espanto – oh!!! Até quando, Brasil? Contrastando com as nossas belezas naturais, pujança e ginga das manifestações culturais, as palavras e ações do atual  governo são conduzidas ao sabor das conveniências e interpretações duvidosas, que contrariam todas as expectativas de futuro do povo brasileiro.

Não bastasse o desmantelo causado pela pandemia, insanidade, irresponsabilidade, mentiras e aberrações compõem um cenário político inusitado e, certamente, indesejado pela maioria, sob o olhar perplexo do mundo.

Escancarada a ineficiência do Estado mínimo, defendido por vários setores, é chegada a hora da reflexão (embora com atraso), que se configura numa excelente oportunidade dentro da própria crise. Mas o governo ignora essa constatação e dá continuidade ao projeto de loteamento do país, dando as costas à preservação do legado da nação.

O conhecimento é desprezado, a mentira é institucionalizada, e a capacidade de entendimento do povo é menosprezada, diariamente, em frente às câmeras, num espetáculo dantesco sem precedentes.

Quem assumirá a culpa por essa situação?, é a pergunta que não quer calar, embora sejamos, na verdade, todos vítimas de um sistema perverso, que ainda não sabe distribuir a riqueza produzida, gerando o maior entrave ao desenvolvimento socioeconômico pleno: a desigualdade social.

Trocar seis por meia dúzia, na condução do país, só irá perpetuar diretrizes comprovadamente ineficazes e obsoletas. O que se apresenta como possibilidade promissora é a nova consciência, adquirida através de uma Educação libertadora, que tanto pode ser promovida pela educação formal, quanto pela informal, sendo ambas voltadas ao desenvolvimento pleno das habilidades, do sentimento de pertencimento e dos valores éticos e morais.

A privação de condições materiais de subsistência leva o indivíduo à revolta e ao adoecimento físico e mental, e a arcar com todas as suas consequências nefastas. Partindo do princípio de que todos são merecedores da felicidade, o que leva o ser humano a trilhar o caminho que o leva à infelicidade, sem saber conduzir a própria vida de forma diferente? Uma vez conhecedor do que há do lado de fora da caverna, ele jamais retornará ao seu interior. Enquanto isso não acontece, permanecerá preso às sombras projetadas nas paredes.

 

A maior celebração da vida

24/6/2020

Plantar, colher e festejar: ações que acompanham o homem desde que mundo é mundo. Esta é a riqueza incontestável, o grande presente com que a mãe Natureza nutre os seus filhos e garante a vida na Terra.

O ciclo junino começa em 19 de março, dia dedicado a São José, com o plantio do milho e do feijão. O nordestino torce para que este dia seja chuvoso, prenúncio de uma boa safra. A colheita virá três meses depois, acompanhada de muita comemoração: música, dança, roupa nova e mesa farta.

A tradição se mantém, passando de geração a geração os costumes que identificam as nossas origens. No Nordeste brasileiro, as festas juninas são a marca do povo trabalhador. Além de comemorar a fartura do alimento, o nordestino mantém na memória afetiva a ligação do homem com a terra e a vida simples do interior; com a quadrilha, a sanfona, a zabumba e o triângulo; com a canjica, a pamonha, o pé-de-moleque, milho cozido e assado; com a fogueira, que mantém acesa a chama da esperança na próxima colheita.

Hoje, o Brasil comemora uma superssafra de grãos, apesar da pandemia, diz a ministra. O fato seria motivo de festa, se a estatística repercutisse na vida dos milhões de brasileiros que passam fome. Ironicamente, enquanto gente não tem grãos para se alimentar, o governo se enche de orgulho pela produção de milho e soja, que alimentará porcos e galinhas no exterior. 

É lamentável a que ponto chega a involução humana, que teima em destruir a biodiversidade ao produzir superssafras de grãos transgênicos para exportação – um suicídio lento e progressivo que, sorrateiramente, atinge todo o planeta. No entanto, muitos se defendem dizendo que o poder regenerador da Terra é maior do que a destruição causada pela produção em larga escala, que desmata e destrói a vida animal, desaloja os povos indígenas e quilombolas; polui as águas e o ar.

Mas será que essa regeneração é real, ou é mais uma mentira que se institucionaliza em nome do alimento dos desejos de uma sociedade consumista? Mesmo supondo que exista, não há regeneração para as vidas perdidas, para o adoecimento do corpo e da alma; para a tristeza, a dor e o luto.  

Que o espírito da abundância desperte a nossa consciência para a necessidade de preservação da vida no planeta. 

 

A verdade da arte

22/6/2020

Sem pressa de se mostrar, a verdade da arte aguarda na eternidade do grito que vai e do eco que volta; na palavra, na melodia, na argila, no gesto, nas tintas, nas câmeras ou na pedra ela estará, sempre, à disposição do observador.

Nas palavras do poeta popular Patativa do Assaré, “Eu canto o que minha alma sente”, está contida a assertiva que, de tão óbvia, muitas vezes passa despercebida, assim como despercebido geralmente passa o nascer e o pôr-do-sol, diariamente. É assim mesmo: às coisas mais importantes não é dada a devida importância – por comodidade, negligência ou conveniência.

Custa a nós, povo adestrado para crer que a salvação do corpo está na satisfação dos desejos, e a da alma em pertencer a alguma instituição religiosa, enxergar que o encontro com a essência da nossa dimensão moral e espiritual pode estar mais na arte do que no capitalismo e nas igrejas, por um motivo muito simples: na verdadeira arte não há espaço para mentiras.

Uma obra de arte estará sempre dizendo algo para nós, independentemente de tempo e espaço. E esse algo é impregnado da sensibilidade do artista, aquele que, além de enxergar a realidade do outro, objetivou-a sob um olhar que os domesticados não podem ter, por ser a liberdade condição essencial para que isso aconteça. Como livre pensador, o artista é capaz de se ver no outro, em suas experiências e diferenças.

No Museu da empatia, em Londres, os visitantes calçam literalmente um par de sapatos de outras pessoas, para refazer outros passos sentindo as dificuldades de caminhar com sapatos de outros pés, diferentes dos seus, ao mesmo tempo em que ouvem suas histórias num fone de ouvido. Os temas abordados são: “Como é ser um refugiado?”, “Como é ter passado anos na prisão?”, “Como é ter redescoberto o amor aos 80 anos?”, entre outros que nos colocam à disposição para desejar um mundo mais justo. Chegando ao Brasil, este museu deve incorporar aos temas: “Como é amanhecer o dia sem ter onde e como escovar os dentes, fazer cocô e tomar o café da manhã”.

Este exercício carregado de verdades pode ser comparado ao recado que nos chega através da literatura: a oportunidade de nos colocarmos no lugar do outro, por períodos longos ou curtos, e que podem ser repetidos e renovados com olhares modificados ao sabor de outras experiências que a vida nos concede.

O diálogo com o diferente nos enriquece e renova, na medida em que nos afastamos da monotonia da reciclagem eterna dos mesmos pensamentos. Um belo exemplo disso é dado pela Natureza – quanto mais rico em diversidade é o ecossistema, mais capaz de nutrir com abundância todos os seres vivos.

A herança social deixada pela colonização, entre outras, é a sensação de que o diferente é perigoso, e que deve ser combatido, diminuído, que sejam tiradas dele as oportunidades, para que o espaço dos privilegiados esteja garantido.

Vivemos tempos em que as inverdades estão na ordem do dia, em capítulos de folhetim que mostram, claramente, o quanto a liberdade e a diversidade são perturbadoras, sendo a forma utilizada para combatê-las, o discurso do ódio, da desumanização em larga escala.

O medo é o ingrediente principal, quando a ideia passada é a de que estamos todos perdidos, e que a salvação está num lugar do passado, onde poderemos recuperar os critérios que permitirão a nossa saída deste caos moral herdado de governos de esquerda e centro-esquerda, durante 30 anos. Segundo um conjunto de verdades impostas, é preciso que valores normativos da tradição – princípios ideológicos, patrióticos, moralistas e religiosos sejam restaurados, e que a nossa maneira de pensar, sentir e agir seja modificada.

O desmonte da nação brasileira, divulgado despudoradamente, é concretizado através de medidas provisórias, vetos e sanções, assim como da escolha de perfis conservadores para ocupar cargos em áreas estratégicas, como as da Saúde, Educação, Cultura e Economia.

Este é o espólio a ser combatido, para que a desigualdade social, esta sim, uma realidade cruel e perturbadora, caminhe em busca de diálogos que levem ao entendimento, jamais ao conflito.

“Apesar de você, amanhã há de ser outro dia”. A verdade contida na arte concebida por aquele ser diferente e perigoso, que precisa ser eliminado, é indestrutível, compreendida e internalizada pelos bons.

 

O que se odeia no outro

19/6/2020

Na nuvem, neste pedaço de céu que a tecnologia nos reserva, encontro a minha Pasárgada e resolvo praticar o ofício da escrita, tantas vezes adiado e preterido por outros ofícios, aos quais me dedico com afinco. Este que me acorda no meio da noite, me instiga e me faz agarrar instantes que jamais se repetirão, deve ter um propósito, ainda não revelado.

A questão a ser refletida, hoje, trata-se de um sentimento presente nas relações humanas desde sempre, agora fermentado na pauta diária de entidades públicas que deveriam se ocupar com o bem-estar social – o gabinete do ódio –, especializado em elaborar, profissionalmente, as chamadas fake-news ou notícias-falsas, com o intuito de difamar e perseguir os que se contrapõem aos interesses de determinados setores, que deveriam se limitar a representar os anseios do povo brasileiro com competência.

Acredito que não se odeia o outro, simplesmente, mas se odeia o que o outro representa e que não pode ser lembrado, ou que deve ser jogado para debaixo do tapete, por conveniência de interesses pessoais e grupais.

Os povos indígenas são odiados porque representam a liberdade e a alegria de viver permanentemente em comunhão com a Natureza, sequestradas do homem branco pelo consumismo, pela concorrência e ganância; odeia-se o negro, por representar uma página vergonhosa da história de injustiças para com o nosso próprio semelhante; odeia-se quem age e pensa diferente, por representar a liberdade, resistência e coragem de assumir quem realmente é; odeia-se para matar o contraditório e esconder a própria incapacidade de ser e fazer diferente.

Odeia-se a arte e a cultura, por representar a essência da nação e a quebra de paradigmas; por despertar sentimentos adiados e emoções indesejadas; por revelar o que deve ser ocultado; odeia-se o livre pensamento que representa o perigo de serem levantados questionamentos, que a conveniência prefere adormecidos, ou que revela limitação e incompetência; odeia-se a educação, porque representa a possibilidade de libertação do povo, através do conhecimento e de seus desdobramentos.

Enfim, odeia-se por odiar, para destruir o outro e deixar de amar. Na verdade, o ódio é patrimônio de quem odeia e, como tal, o senhor de suas ações e de sua vida.

Não à toa, os ensinamentos dos grandes avatares apontam sempre o amor como expressão maior de preservação da vida, propósito para o qual fomos criados. O ódio corrói o organismo, provocando o adoecimento do corpo e da alma, gera a violência que, por sua vez, gera medo, morte e destruição. Por fim, quem odeia demonstra o seu fracasso como ser humano, a sua incapacidade de amar, a sua incompetência, ignorância e falta de inteligência.

Valerá a pena odiar? Valerá a pena deixar o legado deste sentimento menor para as futuras gerações? A fresta que se abre no tempo, durante esta quarentena, está servindo para que os valores cultuados, até então, sejam revistos e avaliados, mostrando-se como uma grande oportunidade de religação com o propósito maior da vida – a felicidade.

 

O princípio do recomeço

18/6/2020

Todo amanhecer traz em si a possibilidade do recomeço apesar de, poucas vezes, reconhecermos essa certeza tão encantadoramente simples e óbvia.

Nos devaneios ocasionados pelo ócio criativo, pode-se imaginar que a descoberta da roda, acontecimento simultâneo em várias regiões do planeta, há milhares de anos, dá-se quando o homem, enquanto observador da vida e da Natureza, desperta para o fato de que os ciclos percorrem uma linha de tempo sem começo nem fim. Essa linha imaginária circular acaba por se materializar na figura da roda, a mais revolucionária descoberta da época em que homem e Natureza conviviam em perfeita harmonia; em que o nascer e o pôr-do-sol eram cultuados, e o Sol e a Lua reverenciados como divindades. Essa descoberta vem para facilitar o transporte e transformar as primeiras aglomerações humanas em cidades, assim como para dar início ao desenvolvimento tecnológico do ser humano.

Apesar da magia e do mistério que envolve a existência terrena havia, no homem primitivo, o entendimento da importância dos fenômenos naturais para a sua sobrevivência. Os astros visíveis aqueciam o dia e iluminavam as noites; as estrelas enfeitavam o céu. A interação do homem com a Natureza era contínua, e a atenção aos sinais que indicavam o tempo do plantio e o da colheita, atividades que atendiam todas as necessidades humanas, até então, era permanente.

Lamentavelmente, o homem moderno desprezou essa ligação vital, e escolheu se aventurar na destruição da biodiversidade, para satisfação de desejos alimentados por um sistema perverso centrado no ego, que se desenvolveu ao longo da caminhada humana.

Apesar da atitude que, gradativamente, vem ameaçando a vida no planeta, o seu poder regenerador acompanha o princípio do recomeço, latente em todo o Universo, e que nos oferece a oportunidade de uma mudança radical em nossa forma de enxergar o que é, realmente, essencial; de entender os sinais vindos do mundo e do outro; de combater os sentimentos menores; de desenvolver o espírito crítico e de reconhecer os próprios erros, talvez, o maior deles, a cegueira em relação a um sistema que não observa as questões humanas, quando o trabalho serve, apenas, para enriquecer.

O recomeço torna-se a única chance que se apresenta à humanidade, após a pandemia que expõe feridas antigas, e traz à tona as fragilidades do sistema capitalista que, em poucos meses, desencadeia a crise econômica e sanitária sem precedentes na história contemporânea. O momento é político e nos permite observar como as cidades, o capital, e todas as regras sociais e morais despencam quando a estabilidade da sociedade é ameaçada.

Redescobrir a roda da vida e nos reconectarmos a ela é preciso, para que a grande revolução do século XXI seja a transformação dos modelos atuais da vida no campo e nas cidades, e da tecnologia, para que estes se coloquem a serviço da humanização, e não da destruição do planeta e do ser humano.

Sequestro da liberdade de expressão

16/6/2020

Apesar das adversidades que, diariamente, vão se somando à pandemia do novo coronavirus, manter a lucidez e o raciocínio construtivo torna-se vital para a nossa integridade e sobrevivência.

A reação lógica ao surgimento de figuras patéticas seria ignorá-las. No entanto, a depender do poder de contaminação que elas possam trazer à sociedade, o silêncio pode se transformar numa coautoria indesejada.

O pleno exercício da cidadania – conceito que remete ao mundo antigo, onde o cidadão era aquele que tinha o direito de emitir a sua opinião sobre os assuntos da cidade, é garantido no sistema democrático, pela liberdade individual ou coletiva da expressão de crenças e pensamentos, desde que (restrição legítima) essa liberdade não venha a discriminar ou injuriar o outro. 

No entanto, pelo que vem sendo observado, não mais, apenas, em casos isolados e passíveis de punição, este conceito está sendo distorcido e adaptado às conveniências com interesses escusos. Uma legitimidade que fere os princípios éticos e morais, norteadores da boa convivência social, está sendo imposta sorrateiramente. 

Confusas, as pessoas fazem interpretações equivocadas a respeito do conceito  “liberdade de expressão”, e vão enxergando essa legitimidade em ataques aos símbolos da República e às instituições, discursos de ódio, preconceituosos e discriminatórios, que ficam impunes e protegidos pelas famosas interpretações e brechas da Lei.

A batalha contra a desinformação e o obscurantismo deve ser diária, porque diária é a manipulação imposta aos que não acompanham a construção histórica da verdade. 

Absurdos proferidos por fantasiados de honestos e grandes pensadores, não podem nem devem ser ignorados, mas sim combatidos como erva daninha que se alastra impedindo que as boas sementes floresçam.

 

Valdemiro e o pé-de-feijão

14/6/2020

A cura da Covid-19 foi anunciada, no início de maio, pelo líder religioso aliado do presidente da República, Valdemiro Santiago, num vídeo postado no YouTube. Segundo a fábula, o tratamento feito à base das sementes do feijão mágico, adquiridas para plantio por um “propósito” de cem, quinhentos e mil reais, na própria igreja, é comprovadamente eficaz. A adesão foi imediata. No vídeo, o pastor alerta os fiéis quanto à necessidade do sacrifício financeiro, que viabilizará o propósito e a cura dos infectados, assim como a prevenção contra o contágio pelo coronavírus. Generosamente, descontos são concedidos aos que, no momento, não dispõem do valor ideal de mil reais. 

No entanto, para desespero dos interessados, recentemente, ao acatar o pedido de investigação da notícia-crime da Procuradoria Federal, o Ministério Público de São Paulo obriga o Ministério da Saúde a desmentir, em nota publicada em seu site, a eficácia das sementes de feijão com poderes de curar a Covid-19. A boa-nova anunciada pelo ilustre pastor Valdemiro Santiago de Oliveira, da Igreja Mundial do Poder de Deus, é descartada pelo órgão oficial da saúde no Brasil.

A partir desta narrativa fabulosa, digna de entrar para os anais da necroficção, por suas consequências imprevisíveis, que vão do efeito placebo à contaminação dos que se expõem à contaminação crendo na imunidade, pode-se estabelecer um paralelo entre a encarnação do mal em forma de pastor de ovelhas, e de seus afetos, e a importante mensagem que nos chega por caminhos enviesados – o déficit cognitivo de boa fatia da população brasileira, decorrente da ausência de uma educação de qualidade.  

O fato de pessoas adultas acreditarem na palavra de um líder investido da legitimidade religiosa aliada à do chefe supremo do poder executivo, sem questionamentos, é um sintoma claro da deficiência ou total ausência de espírito crítico, somente adquirido através de uma educação libertadora, que incluísse em seus parâmetros curriculares as práticas culturais, e matérias essenciais como Filosofia e Ecologia. 

A deficiência de nosso sistema educacional é sentida, não apenas nas classes menos favorecidas, mas principalmente nas mais afetadas pela invasão cultural, que aposta na anestesia do espírito crítico, na manipulação da realidade, no despertar de desejos alimentados pelo brilho da superficialidade e da supervalorização do que vem do exterior.

O reflexo da lacuna deixada pelo sufocamento do sentimento de pertencimento, somente consolidado através do protagonismo do povo como ator de sua própria história, é sentido na influência exercida por figuras investidas de legitimidade, que têm objetivos definidos de poder e enriquecimento ilícito, à custa da massa disforme facilmente manipulada. 

Os acontecimentos que envolvem a criação da fábula “Valdomiro e o pé-de-feijão”, sua inclusão nas redes sociais e a adesão dos fiéis, que sacrificam todas as suas economias confiantes na cura, trazem uma reflexão a respeito do comportamento das massas, que nos remete à campanha eleitoral de 2018, o papel e a influência das redes sociais, a credibilidade angariada por líderes fantasiados de honestos, sustentados por um discurso nutritivo à base de ingredientes que suprem as carências de um povo desnutrido ideologicamente, e sua fé inquestionável num futuro idealizado, livre da corrupção.  

Chegando ao poder sem saber governar, juntamente com uma equipe despreparada para representar os anseios e necessidades do povo brasileiro, porém altamente comprometida com o sistema capitalista, o criador de fábulas que entrará para os anais como o pior presidente da história do Brasil, consegue levar uma democracia construída a duras penas, com sangue, suor e lágrimas, à beira do abismo; consegue colocar o país na contramão do progresso científico, com o anúncio de drogas sem comprovação de eficácia para a cura da Covid-19, com o apoio dos que creem na veracidade da fábula “Valemiro e o pé-de-feijão”, levando o país ao ridículo e descrédito mundial. Descrédito este que já está se refletindo, tanto no setor econômico, como nas demais relações internacionais.

O Brasil, que ainda não chegou ao pico da contaminação, contabiliza, no dia de hoje, mais de 42.000 mortos pela Covid-19, e já flexibiliza as medidas restritivas de combate à pandemia, com a justificativa da preservação de sua economia. 

 

O espetáculo precisa continuar

12/6/2020

Exemplos de países que acabaram voltando às medidas preventivas de distanciamento social após a abertura do comércio, mesmo que gradual, não foram suficientes para que o Brasil deixasse de ceder às tentações e pressões, incorrendo no mesmo erro.

Uma forma de pensar corrosiva, tóxica e destrutiva se apossa dos que não conseguem desmontar as estruturas que atentam contra a vida. Conviver com estatísticas que, diariamente, apontam para uma curva ascendente de contaminação e óbitos, amortiza o impacto das emoções, deixando os espectadores da morte insensíveis, a ponto de manipular números, com finalidades politiqueiras. 

É evidente que, sem medidas emergenciais que garantam o isolamento de toda a população, o governo torna-se o pior inimigo da vida, ao provocar o genocídio em curso, em favor da economia e do fim do tédio da quarentena. 

Entra dia, sai dia e não se vê, sequer, um Ministério da Saúde com profissionais suficientemente competentes para controlar a pandemia e orientar a população que bate pernas pelas ruas e lojas em busca de prazeres momentâneos, que precisam ser constantemente alimentados pela propaganda consumista.

Estamos esperando mais o quê? Que cheguemos a cem mil mortos? Afinal, somos capazes de, através do conhecimento humanizado, reequilibrar essa maneira de pensar obsoleta e criar novos valores que estejam em consonância com o grande espetáculo da vida, que precisa continuar. 

 

Coragem e covardia: faces da mesma moeda

11/6/2020

A cena real protagonizada pelo policial branco americano, que sufocou o homem negro até a morte, desencadeia a maior onda de protestos antirracistas pelo mundo, na primavera turbulenta de 2020, desde o assassinato de Martin Luther King, em 1968. É lamentável que somente uma tragédia deste porte seja capaz de mobilizar o povo em torno de um objetivo comum: acabar com o racismo estrutural.

A narrativa do massacre e extermínio de índios, durante a legalidade da colonização, e de negros, durante a legalidade da escravidão, estendidos até os dias atuais de forma dissimulada, parece não ter sido suficiente para acender a revolta, agora levada ao extremo de se colocar nas ruas, durante tantos dias seguidos, até idosos que deveriam estar cumprindo o distanciamento social em plena pandemia.

Por que a necessidade da cena brutal em plena luz do dia, veiculada exaustivamente pela imprensa? Por que tudo o que aconteceu, há séculos, não teve o poder de despertar indignação e revolta de negros e brancos, a ponto de, jamais, ser consentida a aposição de placas e estátuas de torturadores reverenciados em praça pública?

Durante os protestos, estes ícones foram atirados, pelo povo revoltado, ao fundo do rio. Lá, eles serão punidos com a invisibilidade, como se isso bastasse e fosse suficiente para apagar as lágrimas, o sangue derramado e as mutilações da alma de gerações inteiras.

Mas George Floyd – o mártir do fim do racismo – estará presente de todas as formas, para sempre, para que nunca mais se repita a barbárie que, lamentavelmente, interrompeu a sua vida e levou outras quatro às profundezas da covardia humana.

Desta forma, o homem que comprou uma carteira de cigarros com uma nota falsa de 20 dólares entra para a história da humanidade. Detalhe: é bem provável que ele não soubesse que a nota era falsa.

A covardia levou séculos para que fosse substituída pela coragem que, agora, motiva o povo a gritar toda a sua revolta e indignação reprimidas. O saldo positivo dos protestos está posto nas medidas restritivas à atuação policial, que já estão sendo adotadas em várias localidades.

Aguardemos o final deste triste capítulo da nossa história. A constatação de que a força do povo está na união de propósitos, em torno de uma boa causa, serve de lição. Que seja compreendida pelo povo brasileiro e posta em prática, antes que seja tarde.

#Somos70porcento

Cultura: a essência da nação

10/6/20

Entre muitas perguntas e poucas respostas, a quarentena 2020 vai se consolidando como um tempo de grandes perdas para o guardião da essência da nação brasileira – o setor cultural. Aquele que permite a cada um de nós sermos reconhecidos e nos reconhecermos como partes integrantes dos cantos e recantos de nossa terra, através do sotaque, dos costumes, das tradições juninas; da arte, do artesanato, do frevo, do bolo de rolo, da cartola, do cozido ou do acarajé, assim como das festas pagãs e religiosas.

As perdas do setor são financeiras, decorrentes do fechamento de equipamentos culturais, e de vidas que se foram levando embora o potencial criativo de dona Neném da Portela, de Rubem Fonseca, Flávio Migliaccio, Morais Moreira, Daisy Lucide entre outros. Ontem, a poesia da musa da Geração 65, em Pernambuco, Tereza Tenório, também nos deixou.

No início de maio, Aldir Blanc, autor de mais de 600 letras de música, entre elas o clássico O bêbado e o equilibrista, consagrada na voz de Elis Regina, faleceu em consequência da Covid-19 aos 73 anos, dos quais, 50 dedicados à cultura.

A Cinemateca, localizada em São Paulo, vê o seu acervo ameaçado pelo corte de verbas para a manutenção do prédio que abriga a história do cinema nacional.

Os guardiões das tradições culturais dos povos das matas estão morrendo em consequência da pandemia (voltando pra casa, como eles dizem) sem direito ao ritual funerário de importância fundamental para a cultura indígena.

Pontões e pontos de cultura, casas de espetáculo e circos, sebos e livrarias espalhados pelo Brasil, fecham suas portas deixando mais de 5 milhões de pessoas sem emprego e oportunidades de geração de renda – do pipoqueiro ao produtor cultural; do artista à rede de hotelaria; do artesão às empresas de transporte viário e aéreo.

Atendendo aos apelos do setor, a deputada Benedita da Silva juntamente com mais 23 deputados federais, e a relatora Jandira Feghali, apresentaram o PL 1075/2020 (Lei Aldir Blanc), que prevê o repasse de 3 milhões de reais ao setor cultural durante a pandemia e propõe a destinação de recursos do Fundo Nacional de Cultura para espaços culturais, teatros independentes, circos itinerantes, Pontos de Cultura etc. O projeto de lei foi aprovado por unanimidade na Câmara e no Senado, e agora aguarda a sanção da presidência da República nos próximos dias, sem vetos, é o que se espera.

A maioria concorda que aglomerações são totalmente inadequadas ao combate à pandemia, mas há os que incentivam os cultos religiosos, totalmente dispensáveis quando colocamos a vida como prioridade absoluta. Além disso, a interação com a transcendência independe de local e companhia – o papa Francisco deu o exemplo ao orar, sozinho, na Praça de São Pedro totalmente deserta.

Muitos não veem a arte e a cultura como essenciais, apesar de sua presença em nossas vidas, das formas mais variadas, muitas vezes até, passando despercebidas no design de uma embalagem, numa toalha de renascença, num quadro na parede, num arranjo floral, numa fotografia, num filme na TV, numa música; no pôr ou no nascer do Sol, apreciado por uma fresta da janela; através da arte que nos chega pelos meios de comunicação ou pela disponibilidade de artistas que se propõem a fazer apresentações nas varandas de seus apartamentos, vivenciamos a arte e a cultura continuadamente. Portanto, arte é vida e a cultura é a essência da nação.

 

Como será o amanhã?

8/6/20

A expectativa de como será o amanhã vem varando as madrugadas de muita gente. O coronavírus traz lições que exigem grandes mudanças de comportamento e atitude, se quisermos viver num mundo melhor, daqui por diante. Todos concordam que a doença não somente vem despertando sentimentos solidários adormecidos, como também mostra a necessidade de valorização dos profissionais e de melhor gestão dos equipamentos públicos destinados ao atendimento básico da população, assim como expõe a desigualdade social em níveis que despertam até a atenção dos mais omissos.

Para quem tem o privilégio de ficar em casa, está sendo uma grande oportunidade de fortalecer os laços familiares e de fazer coisas que iam sendo adiadas por absoluta falta de tempo. No entanto, para outros, o confinamento acirrou os ânimos de sentimentos estrategicamente adiados por uma convivência menos intensa, motivando rompimentos e violência doméstica.

Além da doença, outros fatores decorrentes do surgimento do vírus chegam, de forma indireta, para sacudir a humanidade e induzi-la a tomar providências que vinham sendo empurradas com a barriga ao longo de séculos. Os episódios mais recentes expõem o racismo estrutural e são um bom exemplo – o sufocamento do negro George Floyd, em plena luz do dia, por um policial branco, e o descaso de uma mulher da alta sociedade, que deixa uma criança de 5 anos, sozinha, num elevador, empurrando-a para a morte – o menino negro Miguel, filho e neto de servidoras públicas, que prestavam serviços domésticos particulares à família.

Os protestos no mundo, contra este jeito fascista de ser, já completam 13 dias, hoje, transmitidos ao vivo; negros estão sendo convidados a participar de programas de entrevistas nas redes de televisão, como nunca foram; as mídias sociais não param de falar sobre o assunto. A população parece, finalmente, ver-se com mais nitidez como racista, e compreender que o poder está no povo, na medida em que ele se organiza em torno de um objetivo comum.

As campanhas eleitorais estão se aproximando, acompanhadas da retórica politiqueira de sempre. Crescerão nas pesquisas os que tiverem maior competência para induzir o povo às escolhas de melhores propostas para aplacar o ódio e a indignação gerada pelos últimos acontecimentos.

Cabe a nós, e somente a cada um de nós, a perspicácia de avaliar o perfil de cada candidato, analisando a sua vida pública pregressa, para que não caiamos em mais uma esparrela que nos coloque à beira do caos. O que precisamos, com urgência, é nos afastarmos deste precipício com gestores que, daqui pra frente, cumpram as suas promessas de campanha, e coloquem os interesses da nação acima de interesses pessoais.

Um novo mundo é possível, sim.

 

De onde vejo o mundo?

7/6/2020

Observo o planeta Terra pela janela de uma nave espacial. Uma esfera gigante, azul com manchas brancas e acinzentadas num vaivém de várias tonalidades. Lá sou eu. Embriagada sem saber quem sou, entre a imensidão e a eternidade.

Assim, desse jeito, estou livre de cobranças, perguntas e respostas. De julgamentos. De compaixão. Nada me afeta. Nem o medo nem a fome nem George Floyd nem o menino Miguel.

Coronavirus? República à beira do abismo? Ruptura institucional? Nada disso importa. Aqui, do lado de fora, nada importa. Aqui o ar é puro. Não faz frio nem calor (posso regular a temperatura).

Aprecio a arte que me coloca no lugar do universo; não do mundo, do outro, daquele irmão de carne e osso, igual a mim. Aqui sou estrangeira. Ignorante. Desprovida de sentimentos mundanos, humanos. Aqui, eu sou o próprio sentimento.

Na adega há estoque suficiente de vinho tinto. Filé mignon e camarão no freezer. Enlatados finos e queijos suíços. Música instrumental ambiente e arranjos de flores do campo nos cantos, nos centros.

Opa! Não. Não quero ficar aqui. Não é tempo de exclusão. De apartes. De acordes dissonantes. Preciso voltar rapidamente ao meu lugar. Aqui, do lado de fora, não sou cidadã do mundo.

A integridade do cordão de prata está preservada. Ainda há a Covid-19. Ainda há desigualdade social, medo, fome, desmatamento; preconceito, intolerância, ganância; há loucura, insensatez e palavras vãs; há disse-me-disse e disse-não-disse. Há os fantasiados de honestos querendo comandar os destinos do povo. Ainda bem que o reinado de Momo dura, apenas, três dias.

Também há os que mantêm a cabeça erguida, os que se importam com o outro; os que cuidam da nação, os que gritam nas ruas, nas mídias e nas janelas; há os fazedores de arte, os artesãos das palavras; há os que têm atitude e dizem: #Somos70porcento

 

Mentiras assassinas

6/6/2020

Entre 4 e 5 anos, as crianças descobrem que mentir pode evitar punições. No entanto, elas ainda não compreendem a gravidade de seus atos e, somente com o passar do tempo, é que vão descobrindo as fronteiras da convivência.

Declarações desorientadoras e excessos retóricos vão se inserindo no cotidiano das pessoas em forma de mentiras sociais – as inofensivas, usadas como desculpas; as jocosas, que fundamentam as piadas; as piedosas, as que deixam as pessoas felizes, e assim por diante.

O ministro da propaganda nazista, Goebbels, afirmava que “uma grande mentira dita muitas vezes é mais convincente do que uma pequena verdade dita uma única vez”. Eu acrescentaria: qualquer mentira dita por uma pessoa que exerça um papel de liderança, uma única vez, é mais convincente do que uma verdade dita muitas vezes por uma pessoa comum.

Em 2003, uma mentira causou o início de uma guerra. A afirmação de Bush, de que o Iraque possuía armas de destruição em massa, foi oficialmente desmentida, 3 anos após o início da guerra, pelo próprio governo americano. Apesar disso, o massacre continuou com o assassinato de inocentes, destruição de sonhos, orfandade, mutilação de corpos e almas.

Atitudes dolosas, ou seja, as que têm a intenção de induzir alguém ao erro que prejudica e causa conflitos geradores de graves consequências, para a Lei são atitudes criminosas; para as religiões são pecaminosas; para a ciência são distúrbios comportamentais e para o senso comum é falta de caráter.

Apesar da não-aceitação oficial da mentira, dificilmente, encontra-se uma pessoa que não faça afirmações falsas esperando que os ouvintes acreditem e, facilmente, são encontradas pessoas que criticam veementemente os que mentem com o intuito de obter vantagens pessoais e prejudicar a reputação de alguém.

No entanto, vemos hoje no Brasil a retórica politiqueira carregada de inverdades diplomáticas com objetivos descarados de subverter a ordem, gerar o caos e alimentar o ódio, ser aceita, propagada e alimentada pelos que enxergam nisso vantagens pessoais; as fake-news institucionalizadas com objetivos claros de manter cada vez maior o fosso que separa os cidadãos em duas categorias: a baixa e a alta sociedade.

É isso o que queremos para as nossas vidas? É este o legado que queremos deixar para as futuras gerações?

 

Feridas abertas

5/6/2020

Cada dia desta quarentena é mais um convite à reflexão e ao aprendizado. Feridas que sangram há séculos, entre elas a escravidão, estão bem caracterizadas na vítima apresentada recentemente pela mídia: o pequeno Miguel.

Enquanto milhares de vítimas tornam-se invisíveis, a tragédia chama atenção por vários motivos, entre eles: o palco – as torres gêmeas recifenses, projeto inspirado no World Trade Center, palco do 11 de setembro; o algoz – uma senhora da alta sociedade; a vítima – o filho de uma negra da baixa sociedade; a infração – a desobediência às regras da quarentena, motivada por necessidade de sobrevivência.

Acrescente-se ao cenário: a atitude da senhora da alta sociedade, que deve ter frequentado alguma faculdade, folheado alguns livros de história, filosofia, psicologia e, pelo menos, dois clássicos da literatura. Afinal, este é o mínimo previsto para uma pessoa deste nível social.

Colocar uma criança de 5 anos no elevador de serviço, desacompanhada, num equipamento que ela não deveria usar frequentemente (a familiarização dela era com as escadarias do morro) é, no mínimo, não ter a capacidade de prever que a curiosidade de qualquer criança – pobre, rica, preta, branca ou amarela, faria com que ela apertasse botões, explorasse outros andares ou subisse em locais inadequados. Ou será que somente as ricas e brancas têm curiosidade e criatividade? Ou será que as pretinhas são incapazes de descumprir ordens (afinal, deve ter sido dito pra ela descer no térreo e procurar a mãe)?

Creio que a senhora da alta sociedade apostou na sorte a que está habituada, mesmo sabendo do risco ao qual a criança estava sendo exposta, a menos que ela sofresse de algum retardo – o que não me parece. Ou será que a defesa vai tentar diminuir sua pena apresentando um laudo que comprove um distúrbio mental? Da preventiva ela já se livrou pagando a fiança.

Quais os fatores que a levaram a agir daquela forma? Apenas enquadrá-la nos rigores da Lei não é suficiente. É preciso que fique bem claro que a atitude dela não é pontual, porque traz na bagagem os sintomas de uma mazela não sarada, que vem de muito longe, e que se reflete no jeito de ser fascista de boa parcela da população.

 

Um jeito mofado de ser

3/6/2020

Vem crescendo, nos últimos meses, a ojeriza por um “jeito de ser” que caracterizou o movimento das forças conservadoras europeias (fascismo), opositoras ao movimento socialista vitorioso na antiga União Soviética, no início do século passado.

Em maior ou menor grau, este “jeito de ser” está presente no cotidiano das pessoas sem que elas se apercebam disso, e façam uma correlação de suas atitudes com as do protagonista de uma das páginas mais tenebrosas da história da humanidade – o nazismo, movimento derivado do fascismo, que deixou seu rastro destruidor por várias gerações.

Este “jeito de ser” é ainda admitido, desejado e até celebrado por indivíduos conservadores, que são atores e vítimas, ao mesmo tempo, deste comportamento institucionalizado por séculos, nos vários agrupamentos sociais, entre eles o familiar.

Censura, autoritarismo, preconceito, machismo e intolerância são algumas das características que identificam essa ordem perpetuada pelos que se contrapõem a gestos solidários e libertários, induzidos pelo medo infundado da suposta perda de benesses. Isso leva o indivíduo a uma cegueira intelectual, moral e espiritual, que o paralisa e impede de enxergar que a felicidade duradoura, a que todos têm direito, não deve ser construída sobre a infelicidade do outro.

A lógica do conservadorismo é a mesma das crianças que não admitem ser contrariadas e nem dividir o que desejam somente para si, com o irmão, primo ou amigo. Os adultos que não foram educados e nem educaram as suas crianças para se tornarem pessoas solidárias, são os eternos responsáveis pela perpetuação do “jeito fascista de ser”.

O movimento antifascista, que cresce em oposição ao atual governo e seu ministério, rejeita o “jeito mofado de ser” desses servidores públicos, que tantos males vêm causando à sociedade brasileira. A atitude significa que a maioria da população (em torno de 70%) está infeliz, porque sofre as consequências do desgoverno, ou seja, a forma como vêm sendo tratados os que produzem a riqueza da nação.

A ausência total de um projeto político para o fortalecimento da nação brasileira fica ainda mais evidente ao longo da crise sanitária causada pela Covid-19 que, no momento, ultrapassa a marca das 30.000 mortes, colocando o Brasil no topo da lista do número de infectados, ao lado dos Estados Unidos, atual epicentro da pandemia.

A demonização do Estado, tão propagada pelos meios de comunicação com o intuito de causar indignação na população, que prefere se limitar ao exercício pleno da democracia, apenas, na época das eleições, por obrigação, terá de ser passada a limpo neste momento em que a pandemia deixa claro que somente um Estado bem administrado e eficiente pode proteger o cidadão, dando-lhe condições para que a sua dignidade seja mantida durante o enfrentamento das medidas restritivas necessárias, e também de forma continuada.

É chegada a hora de desatar os nós e construir as pontes, antes que seja tarde, e de colocar acima de interesses pessoais e partidários, os interesses da nação. Embora com atraso, o tempo é do exercício diário e pleno da democracia. Afinal, além de deveres, o povo também tem seus direitos assegurados pela Constituição Federal.

 

“Não consigo respirar”

3/6/2020

Em silêncio, em voz alta, dita em casa ou dentro de uma UTI, a frase vem se repetindo incontáveis vezes, não apenas como um pedido de socorro, mas também como um grito de alerta que jorra do inconsciente coletivo.

Já não é mais possível sufocar este grito: o planeta não consegue respirar. O desmatamento está roubando dos animais o direito de respirar; a poluição das águas está sufocando os peixes; a poluição do ar está nos matando por falta de ar puro; estamos sendo bombardeados por informações que tiram o nosso fôlego; as máscaras dificultam a nossa respiração.

Num gesto simbólico e fatal, o branco sufoca o negro até a morte, materializando o que, há séculos, vem asfixiando a dignidade de negros, pobres, indígenas, homossexuais, ciganos e mulheres – ódio que alimenta a violência e interrompe vidas.

Afinal, por que e pra que tanto ódio?

 

Ganância, consumismo, omissão e a destruição do planeta

29/5/2020

Tirem as suas próprias conclusões:

“Assustadoramente antecipatório — e uma das maiores referências sobre epidemiologia entre os recentes trabalhos de divulgação científica —, o livro “Contágio”, do aclamado escritor David Quammen, investiga as infecções que começam no reino animal e migram para humanos, num processo conhecido como spillover, ou “transbordamento”, assim como ocorreu com o novo coronavírus”. (Companhia das Letras)

A iminência de uma catástrofe mundial, ou seja, o surgimento de pandemias, em qualquer canto do planeta, foi divulgada em 2012, na data da publicação do livro. As causas apontadas pelo cientista são: desequilíbrio do ecossistema, causado pelo desmatamento, contato do homem com a vida selvagem – caça, confinamento de animais, garimpagem, pecuária, extração de substâncias para utilização em componentes eletrônicos, entre outros.

Tomando conhecimento do estudo, Obama criou o Conselho de Segurança Nacional para tratar o assunto e não ser surpreendido por uma pandemia anunciada. Ao assumir a presidência, Trump encerrou o programa e engavetou os protocolos que estavam em andamento.

Resumindo: sintam-se culpados por toda a dor causada pela Covid-19, os que silenciam tornando-se coniventes com a situação; os que consomem o que é essencial, apenas, para a satisfação de seus próprios desejos; os que elegem políticos que colocam interesses particulares acima de tudo e de todos, e se recusam a dar continuidade ao trabalho do antecessor.

Concluindo: ou entendemos que os recursos da Terra são limitados, ou paramos de consumir bugigangas, ou aprendemos a diferenciar o político que tem projetos pessoais do que tem projetos sociais, ou seremos os únicos responsáveis pela destruição do planeta e da humanidade.

As escolhas estão em nossas mãos: a Educação de qualidade para TODOS é a única forma de resolver essa questão, a médio e longo prazo; compreender o impacto do consumo no surgimento dos vírus e reduzir drasticamente essa prática é urgente; usar a inteligência a serviço da diminuição do aprofundamento das desigualdades é para ontem.

 

Chocam os ovos da serpente

23/5/2020

Está em curso um lento envenenamento da nação brasileira, desprotegida em sua cidadania e influenciada por discursos negacionistas. O descaso com que os pilares de sustentação – arte, educação e cultura – estão sendo tratados, nada mais é do que uma nova roupagem usada para censurar o livre pensamento e a liberdade de expressão.

A força da propaganda, que isola o povo do mundo real, está inserida no discurso politiqueiro do falso moralismo e do combate à corrupção – o Estado é demonizado, a Educação é mascarada com estatísticas falsas, e a Arte ganha caráter unicamente ideológico.

A pandemia surge para abrir uma fresta no tempo e, por ela, começarmos a enxergar um novo horizonte: a chance de quebrarmos os ovos, antes que os répteis ganhem o mundo.

A real corrupção está na pá de cal jogada no buraco cultural cavado pelos que silenciam com medo de perder suas benesses ou de possíveis retaliações, como a do ataque terrorista ao jornal satírico Charlie Habdo, em Paris, em janeiro de 2015.

A Educação de qualidade é o instrumento capaz de acabar com a corrupção e de formar cidadãos aptos a fazer suas escolhas com competência e espírito crítico.

 

Luto pela nação brasileira

21/5/2020

Assistimos, estarrecidos, como sujeitos históricos que somos, à degradação do nosso patrimônio cultural, provocada pelo descaso com que a arte, a educação e a cultura vêm sendo tratadas pelos poderes públicos constituídos.

A carta-branca assinada e entregue pelo povo brasileiro aos governantes é desprezada e ignorada frente às necessidades e desejos dos que geram a riqueza da nação.

Os pilares de sustentação da sociedade são atingidos estruturalmente, ao serem destituídos de sua importância na formação e desenvolvimento moral e intelectual de cada cidadão brasileiro.

A cadeia produtiva da arte engloba uma grande diversidade de profissionais ligados à produção musical, às artes cênicas, plásticas, circenses, visuais, à religiosidade, ao desenvolvimento cognitivo, entre outras categorias que movimentam, também, a cadeia produtiva da economia, que vai muito além do pipoqueiro em frente às casas de espetáculo e da rede hoteleira.

Em meio à crise do governo, já instalada há algum tempo, chegam a pandemia do coronavírus e o pandemônio da política. A insistência de três países, entre eles o Brasil, em contrariar as recomendações dos órgãos mundiais de saúde, baseados em pesquisas científicas: o distanciamento social como a única forma eficaz de combater a doença, está levando ao aumento considerável do número de vítimas fatais e ao colapso do sistema de saúde. Os países que seguiram as recomendações já estão saindo da crise e retomando a sua economia gradativamente.

Acrescente-se a isso a humilhação e a sensação de impotência a que a população vulnerável está exposta, diante das frases mais repetidas ultimamente: “mantenha o isolamento, troque a máscara a cada duas horas, use álcool em gel, água e sabão, e fique em casa”. Como ficar em casa e se manter isolado num cubículo onde moram 6, 8 e até mais pessoas, sem abastecimento d’água nem dinheiro pra comprar comida, álcool em gel e sabão?

A maioria dos governos está resolvendo a questão devolvendo, de forma ordenada, boa parte dos impostos retidos nos cofres públicos (pagos pelo povo), que devem servir ao bem-estar social geral, e não às grandes empresas (muitas delas contumazes sonegadoras de impostos) e aos bancos, para que estes não “quebrem” e se habilitem a dar crédito, mediante pagamento de juros exorbitantes (muito superiores aos cobrados dos grandes empresários), aos micro e pequenos empresários que precisam manter em dia alugueis, concessionárias, folha de pagamento, além de minimizar seus prejuízos e continuar trabalhando após a crise.

Que lógica absurda e individualista é essa? As empresas e os bancos não podem “quebrar”, mas o povo que gera a riqueza da nação pode, sim. Os bancos se apossam do dinheiro do povo, devolvido ao povo em forma de empréstimo atrelado à hipoteca de seus bens, acrescido de juros altíssimos, sem alternativas. É isso ou fechar as portas.

Agora estão surgindo vitrines de empresas “caridosas” com o discurso de “cumprir a função social”, doando bilhões (quem fará a fiscalização dessas doações?) extraídos dos cofres públicos, ou seja: do fruto do trabalho do próprio povo. É um verdadeiro “balaio de gatos”.

Ninguém precisa de caridade oportunista. O que o povo precisa é de bem-estar social promovido por uma educação de qualidade e pelo acesso de todos aos bens culturais da nação – instrumentos capazes de formar cidadãos aptos a dispensar “a esmola dada a um homem que é são, ou lhe mata de vergonha ou vicia o cidadão”.

Em um ano e meio, o antigo e respeitado Ministério da cultura já passou por várias situações vexatórias: foi extinto e substituído por uma Secretaria de cultura, por onde já passaram quatro secretários sem deixar nenhum legado substancial; esteve envolvido em cenas de apologia ao nazismo, à tortura, à volta da ditadura militar e a toda sorte de intolerância e preconceito, ou seja: tudo o que o setor cultural abomina; foi palco de cenas protagonizadas por uma secretária que não enxerga as diferenças entre um gabinete de trabalho de uma servidora pública e um estúdio de gravação de estrelas do cinema; entre ficção e realidade.

E para completar o estrago, durante a pandemia não é apresentado, muito menos executado, um plano de apoio em nível federal aos milhares de trabalhadores do setor cultural, aos diversos pontos de cultura e outros equipamentos espalhados pelo Brasil, que fazem parte da cadeia produtiva da economia.

Quais as alternativas para mudar este cenário individualista e excludente? Uma é a que estou fazendo aqui: denunciar, esclarecer, provocar; outra é compreender que arte é vida, tentando imaginar um mundo sem literatura, sem poesia, sem música, sem cinema, sem humor, sem artesanato, sem teatro, sem contação de histórias, sem as artes visuais, sem o circo, sem tudo o que possa despertar em nós: bons sentimentos e grandes emoções; que possa fazer com que nos coloquemos no lugar do outro; que possa nos fazer enxergar a beleza da vida; que nos estimule a amar e cuidar da Natureza e do nosso semelhante; a despertar a nossa religiosidade.

Vamos sugerindo outras alternativas nos comentários desta postagem?

 

Um dia para comemorar

10/5/2020 (Dia das mães)

Lembro, neste segundo domingo de maio de 2020, todas as mães – a Mãe Terra, as mulheres que me antecederam e as que vieram e virão depois de mim. Lembro, especialmente, as que estão separadas de seus filhos.

A entrada da primavera, na Grécia antiga, era festejada em honra de Rhea, a mãe dos deuses.

Na atualidade, a data ficou estabelecida a partir de uma homenagem que a americana Anna Jarvis prestou à sua mãe. No entanto, os comerciantes – principalmente os que vendiam cravos brancos – fizeram com que o dia se tornasse lucrativo, motivo suficiente para que Anna entrasse com um processo, em 1923, para cancelar o Dia das Mães. Mas o lucro falou mais alto e a data permanece até hoje.

 

A coisificação da vida

9/5/2020

A vida humana passa a pertencer ao universo das coisas, quando CPF’s e CNPJ’s substituem nomes e rostos, e estatísticas traduzem tristes realidades.

Ao, apenas, tomarmos conhecimento de que a gripe espanhola fez milhões de vítimas no início do século passado, abdicamos da capacidade de analisar os fatores que levaram todas aquelas pessoas a perder suas vidas, deixando um lastro de dor, e de evitar que erros futuros pudessem ser repetidos.

E o que poderá acontecer no futuro, quando o presente é coisificado? Quando causa e efeito são ignorados, minimizados e reduzidos, apenas, a números, ou seja, a coisas?

A Covid é uma gripezinha, uma “coisa-à-toa”. Afinal, um dia, vamos todos morrer mesmo, né? E daí? Vamos “coisar” sem máscara, vamos nos aglomerar, nos tocar, vamos fazer um churrasco para comemorar.

Será possível que ainda tem gente sem perceber que isso é “coisa-feita” pelo “coisa-ruim”?

Mas a “coisa-em-si” não tem problema. Tá OK?

 

O bom combate

30/4/2020

Acredito ser um dos maiores dilemas da existência humana, a alienação. Muitas vezes, é necessário que conceitos sejam desconstruídos, para que possamos buscar a essência da vida e compreender que o que fazemos ao outro fazemos sempre a nós mesmos.

Esta compreensão pode se dar em momentos difíceis, como o atual, quando valores precisam ser revistos diante de versões caricatas da insensatez e de egos inflados, que deixam expostas as mazelas do sistema; quando as lentes de um fotógrafo, sabiamente, flagram instantes de inteligência da Natureza, compartilhados nas redes sociais; quando a solidariedade assume o papel do Estado fazendo justiça social com as próprias mãos, levando um pouco de dignidade aos que vivem em situação de vulnerabilidade.

Sempre tive predileção pelo estudo das ciências da Natureza, porque é nelas que encontro respostas satisfatórias. Agora, mais do que nunca, é delas que procuro me valer para ter uma visão mais nítida da situação atual, que nos obriga, de uma hora para outra, ao confinamento e isolamento social, provocado por uma pandemia que colapsou o sistema de saúde e o econômico, em vários países. Neste exato momento, o Brasil é mais penalizado por ter, também, que enfrentar uma crise política que atinge impiedosamente o povo trabalhador, que já carrega o estigma do trabalho escravo como fundamento de prosperidade econômica de uma parcela mínima e privilegiada da população.

Através do conhecimento empírico e acadêmico, aprendemos que o planeta Terra é um ser vivo complexo (Gaia) e que nós interagimos com ele numa constante simbiose. No entanto, o homem declarou guerra à nossa morada, em busca do progresso a qualquer custo, desfazendo as relações que mantêm o equilíbrio do biossistema.

No instante em que este perigo é percebido, o medo primordial impresso em nosso DNA é acionado, provocando respostas do nosso corpo às ameaças – reações instintivas do organismo geradas pela ansiedade, tristeza, rancor, inveja, ciúme, etc. Estes são sentimentos que perturbam o fluxo da energia pelo corpo, afetando o sistema imunológico, o coração, a digestão, a produção de hormônios.

Estados emocionais negativos acrescentados ao acúmulo de dores atávicas que carregamos, geram o vício da infelicidade, que atinge o campo energético coletivo. E como qualquer outro vício, precisa ser constantemente alimentado com emoções compatíveis, facilmente encontradas na mídia sensacionalista.

Apesar de assustador, o quadro pode ganhar uma brilhante paleta de cores, a partir do conhecimento. Uma inteligência comum a todas as formas de vida, equivalente a um princípio organizador, existe por trás do funcionamento dos órgãos, convertendo alimento em energia, ativando o sistema imunológico, que protege o corpo dos invasores, entre outros. São as funções coordenadas por essa inteligência, que também são responsáveis pelas respostas do organismo ao ambiente. No entanto, apesar de inteligente, o corpo humano não consegue estabelecer diferenças entre situações reais e ficcionais, e reage como se estas fossem verdadeiras.

Também aprendemos que tudo no mundo material possui um campo energético que vibra num movimento incessante, e que a matéria nada mais é do que energia em movimento num determinado comprimento de onda. O pensamento também é energia que vibra, só que em frequências diferentes, mas que também podem ser medidas por uma unidade chamada Hertz.

Estudos mostram que os vírus possuem baixa vibração, em torno de 5,5 Hz a 14,5 Hz, e que eles não sobrevivem quando expostos a vibrações mais altas, ou seja, acima de 25,5 Hz, segundo Thomas Zahnd (www.danielrochaoficial.com).

Os coronavírus são um grupo de vírus de genoma de RNA simples de sentido positivo (serve diretamente para a síntese proteica), conhecidos desde meados dos anos 1960.

Segundo o médico e pesquisador americano David Hawkins, as frequências vibracionais promovem tanto a cura quanto a doença.

Vibrar numa frequência alta, através de pensamentos, sentimentos e emoções elevadas, aumenta o nosso sistema imunológico, prevenindo-nos contra o ataque do invasor.

Em vez de culpar a escuridão, vamos acender a luz e emanar um campo energético correspondente ao nosso estado interior, que pode ser elevado a partir das escolhas que fazemos.

Neste momento de isolamento, a opção pela leitura de bons livros e por filmes que tragam mensagens edificantes, a solidariedade, o reconhecimento do que é essencial, o compartilhamento de lives construtivas, cursos on-line, meditação, oração, o perdão, o estar junto à família e as boas risadas podem fazer toda a diferença para a nossa imunidade. Cultivar a negatividade, certamente, só irá congestionar, ainda mais, o já combalido sistema de saúde, e atrasar a volta à vida.

E aqui vai a dica: vamos sonhar juntos com um futuro promissor onde a arte, a educação e a cultura sejam acessíveis a todas as gentes; onde cada trabalhador possa optar por ter seu hectare de terra para plantar, colher e dele tirar o seu sustento – a verdadeira riqueza; onde o progresso seja a humanização do homem; onde ciência e tecnologia não se distanciem do objetivo de respeitar, acima de tudo, a Natureza.

Este é o bom combate.

 

Evoluir ou morrer: simples assim

27/4/2020

Volto ao território sagrado de uma infância introspectiva e harmoniosa. Um de meus maiores desejos era flagrar o instante em que o botão se abrisse, transformando-se em flor – somente assim, eu descobriria o segredo da vida. Acredito que, em determinados momentos, todos nós precisamos regressar ao nosso quintal em busca das borboletas e do que é essencial para a nossa felicidade.

Meu mundo era lá, aonde eu acompanhava os passos daqueles que me mostravam o caminho que eu deveria trilhar. Os restos recolhidos da cozinha eram colocados num buraco fundo, cobertos com uma pá de terra e um punhado de cal, diariamente. Hortaliças, frutas e verduras eram carinhosamente cultivadas e colhidas para o preparo das refeições. Um pouco antes de o sol se por, as plantas eram regadas e os ovos recolhidos dos ninhos das galinhas. Nas sextas-feiras, dia em que todos se envolviam com a limpeza da casa, minha avó preparava o pão sovado, colhia cravos, rosas, dálias e crisântemos para colocar nos jarros, distribuir com a vizinhança e, no dia seguinte, enfeitar os altares da Matriz.

Certo dia, ao chegar à escola para me buscar, meu avô anunciou que o buraco estava cheio e pronto para receber a muda de parreira. “Quem vai plantar é você”, avisou. A expectativa de colher cachos de uvas brancas, enormes, perfumados e deliciosos perdurou durante longos dias e noites. As ramas iam sendo, pacientemente, enroladas nas estacas fincadas ao redor do tronco, à medida que elas cresciam e os minúsculos cachos surgiam.

O que era colhido no meu mundo era admirado por vizinhos, parentes e amigos, que nos visitavam, enquanto tudo o que ali acontecia estava sendo projetado para me acompanhar como metáfora, pelo resto da vida.

Os livros e a observação foram me mostrando que o progresso da humanidade estava ligado à ideia de dominação da Natureza pelo homem, e do homem pelo seu semelhante. No entanto, essa prática implicava na destruição do solo, na poluição do ar, na extinção de muitas espécies, nas alterações climáticas, entre outras consequências desastrosas, que não tinham nada a ver com o meu quintal; observava que os povos que tinham o propósito de viver em comunhão com a Natureza, a paz e a igualdade, tornavam-se presas fáceis e eram dominados por outros povos – gananciosos, agressivos, egoístas, prepotentes e militarizados.

Retrocedendo na linha do tempo histórico encontrei, nas descobertas arqueológicas de Qumran, perto do Mar Morto, detalhes da vida dos essênios – tribo de judeus da qual Jesus descende –, coisas muito interessantes: nas escavações não foram encontrados vestígios de armas, mas sim, de práticas artísticas e estudos de plantas medicinais, educação e astronomia; eles dedicavam as manhãs ao plantio e colheita do trigo, gergelim e frutas, e à preparação do pão e do mosto de uvas; foram os primeiros a abolir a escravidão; devido à fartura de alimentos dividiam tudo entre eles; desconheciam a fome, a miséria e as doenças; vivam em paz com os vizinhos, porque sempre tinham muito o que oferecer e nada a cobiçar; produziam instrumentos musicais, para a escrita, culinária e agricultura. Estranhamente, 70 anos após a morte de Cristo, eles desapareceram.

A nova ordem mundial, que defende o progresso da humanidade numa velocidade assustadora, entra em colapso, na primeira metade do século XXI, mostrando-se ineficaz no controle da pandemia provocada pelo coronavírus, que se alastra numa velocidade igualmente assustadora.

O raciocínio de que a evolução se dá em sentido único, na linha do tempo, é questionável do ponto de vista da consciência humana. O surgimento de um novo céu (consciência) e de uma nova terra (manifestação da consciência no mundo físico) é vital para a sobrevivência da espécie humana. A humanização do homem passa pela conscientização de que ele é o único responsável pela forma como está se relacionando com a Natureza e seus semelhantes, e pelas consequências causadas por esse relacionamento. A questão agora é: evoluir sem esperar que mitos e heróis venham resolver tudo por nós, ou morrer. Simples assim.

 

Salete Rêgo Barros

Arquiteta (1977|UFPE), pós-graduada em Parapsicologia (1992|IPPP), editora e fundadora da Novoestilo Edições do Autor (1995); produtora cultural executiva da Cultura Nordestina Letras & Artes (2012); presidente da LETRART – Rede de Associados Letras & Artes (2017); membro de entidades literárias pernambucanas; organizadora e participante de diversas coletâneas; criadora dos projetos “Agenda do Poeta” (1999), “O fio da meada – artes e ofícios” (2016), “FELIPPA – Festival de Literatura do Poço da Panela” (a executar). Coletânea de memórias (2019) e SEMEAR LETRAS & ARTES (2019). Autora de artigos, editoriais, orelhas e prefácios, e de títulos nos gêneros ensaio, poesia, conto, crônica e bioficção.

https://www.culturanordestina.com.br

5 respostas

  1. Excelente iniciativa.
    Acompanhei muitas delas pelo seus canais virtuais, sempre coerente com s situação atual . Verdades que precisam de voz, para sacolejar nosso povo e acordá-lo para tentar resistir a esta onda de obscurantismo, negação e incertezas.
    Obtigada a esta cidadã do mundo, que nos mostra que ainda é possível se rebelar. Um grande abraço. Parabéns !!!!!

  2. Olá Salete, muito importante essas crônicas que com clareza está colocando nesse espaço sideral.
    O interessante é que as notícias são dadas nós meios de comunicação e muitas pessoas acreditam que seja verdade. Atenta aos debates você mostra como a questão de desenrola e as consequências.
    Parabéns!!!!
    Simplesmente Fantástico suas reflexões!!
    Meu abraço fraterno Ivanilde

  3. Simplesmente perfeitas suas colocações, Salete.
    Na condição de “cidadã do mundo” você faz bonito, divulgando o pensamento e a perspectiva de muitos de nós.
    Muitos, muitos.
    O bem sempre vence o mal.
    É imperioso acreditar!

  4. Completa essa sua crônica… Que atravesse outros espaços… Nordestina cidadã do mundo… Esclarecida sim senhor… Fala por quem se cala… Muito bem Salete.

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