II COLETÂNEA DE MEMÓRIAS – CARTAS A CLARICE LISPECTOR
Querida Clarice,
Diante de seus tantos atributos, eleger um deles foi o primeiro desafio. Escolhi o que mais admiro: a escrita confessional, o desvelar pensamentos, o extrair de si o que todos escondemos. Parto de “viver afinal não passava de se aproximar cada vez mais da morte“. Quem não teme a própria finitude? Quem nunca pensou que cada dia que se vive é um dia a menos a se viver?
Sigo citando “o problema moral em relação aos outros consiste em agir como se deveria agir, e o problema moral consigo mesmo é conseguir sentir o que se deveria sentir“. Quem não freia instintos? Quem nunca percebeu a distância entre intenção e gesto?
Nada me restando além da boa vontade, pensei em homenageá-la inscrevendo nesta carta alguns títulos seus. Espero que agrade ou, ao menos, que se divirta imaginando quem será essa fã maluca. Eis então:
Como um selvagem afastava-me de quaisquer sentimentos, fantasias e amores, marcado que fora pela tragédia da morte de minha mãe, Laura.
Um dia, ainda não era noite, caminhava pela calçada – sigo sempre idêntico trajeto, como se vivesse em uma cidade sitiada em que é preciso evitar perigos – quando um lustre caiu perto de mim. Rápido como um sopro de vida, o objeto se espatifou na calçada a poucos centímetros. Um estilhaço feriu minha mão. Estanquei o sangue com um lenço e olhei para cima. Estava escuro, era a hora das estrelas. Consegui ver uma mão que se recolhia fugitiva na janela do terceiro e último andar do prédio decadente daquela rua. Abaixei-me por curiosidade e apanhei o pedaço que me atingira. O vidro brilhante e grosso mantivera o formato, uma imitação de rosa. Embrulhei-o no lenço e coloquei no bolso.
Prossegui, certo de que chegaria em casa exatamente às dezoito e trinta, como sempre. Seguia a trilha conhecida e não levava mais de trinta minutos entre o escritório e o apartamento. Consultei o relógio. O pequeno acidente havia me atrasado três minutos. Subi as escadas. No terceiro andar procurei a chave. No bolso só havia os restos do lustre em formato de rosa. Teria caído na calçada? Desci para procurar.
Voltei e não encontrei vestígios, nem da chave, nem do lustre. Olhei novamente para o terceiro andar daquele prédio e, para minha surpresa, a mão feminina surgiu. Balançava o chaveiro – era o meu, não tive dúvidas – acenando para mim.
Uma legião de espíritos me impulsionava para a entrada daquele edifício. Embora o interior não fosse melhor que sua aparência externa subi as escadas saltando os degraus de dois em dois. Para meu corpo a subida se assemelhava a uma via crucis. Mas meu pensamento me impelia para cima. Pensei ter reconhecido aquela mão. Além disso, o pedaço de vidro em forma de rosa lembrava o pequeno abajur que pertencera a minha mãe. Ficava em sua cabeceira, em seu leito de morte. Empurrado por esses laços de família, cheguei ao último andar, encontrei a porta entreaberta e entrei. Ao contrário do que se poderia esperar a pequena sala escura e úmida cheirava a rosas e o perfume adocicava o ambiente. Tudo me pareceu familiar. Aos poucos fui me adaptando à escuridão e vi a mulher sentada em uma cadeira de balanço de madeira e palhinha, de costas para mim, à frente da janela que permanecera aberta. Ela murmurou algo muito baixo, mas o timbre da voz chegou a mim: feliz aniversário. Uma onda de saudade e prazer percorreu meu corpo. Havia esquecido, fazia quarenta anos naquele dia.
Aproximei-me, seria Laura, minha mãe? Desde seu assassinato há vinte anos a tragédia me queimava como uma água viva. O caso nunca fora esclarecido, talvez latrocínio, talvez crime passional. A imprensa, insensível, publicara que a mulher era conhecida por despertar paixões e felicidades clandestinas.
Senti no bolso o pedaço de vidro ainda embrulhado no lenço e segurei-o em minha mão. Rodeei a cadeira e me postei à sua frente. Não a reconheci de imediato, mas sabia que era ela, muito mais pelas marcas deixadas em torno do pescoço estrangulado que pelos traços envelhecidos. Mãe, vim lhe buscar, disse mostrando o caco de vidro em forma de flor que restara do lustre que ela fizera cair para me avisar de sua presença.
Para meu horror ela gargalhou e levantando-se empurrou-me pela janela. Ia cair, mas consegui me sustentar no peitoril. A mulher se aproximou para mais uma vez me impulsionar para fora. Nesse instante enfiei a flor vitrificada, afiada como uma lâmina, em seu pescoço. O sangue jorrou sobre mim e ela tombou na cadeira. Vi meu chaveiro caído no chão, apanhei-o e corri para a porta. Fugi em desespero e já no térreo percebi que estava sujo de sangue. Limpei com o lenço o rosto e o pescoço.
Retornei ao meu apartamento. Ao chegar corri para o banheiro, minhas mãos estavam sujas e notei que a ferida do estilhaço novamente minava sangue. Caminhei para o lavatório, abri a torneira, ia lavar as mãos e o lenço quando de frente para o espelho uma visão me aterrorizou. Meu pescoço marcava os mesmos dedos com que eu havia asfixiado minha mãe.
BRUNA ESTIMA BORBA é Professora universitária com doutorado em Direito, autora de contos e das novelas “Tempo”, “Vivendo as circunstâncias” e “O Edifício Estrela”. Premiada pela Academia Pernambucana de Letras.
Instagram: @bruna_estima_borba
Acesse o Edital de participação da Coletânea Cartas a Clarice Lispector
https://culturanordestina.com.br/ii-coletanea-de-memorias-cartas-a-clarice-lispector/
Uma resposta
A carta de Bruna é um mergulho profundo na alma de Clarice. Parabéns pela seleção dos textos, carinhosamente preparada para este momento em que comemoramos o centenário da grande escritora.