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Carta de Salete Rêgo Barros a Clarice Lispector

salete
II COLETÂNEA DE MEMÓRIAS – CARTAS A CLARICE LISPECTOR
Madrugada insone de 29 de março de 2020

Casa Forte, Recife, Pernambuco

Querida escritora,

 

Sinto que, agora, estás bem. Começo com um pedido: clareia, Clarice, com a tua luz, a escuridão dos que sofrem as consequências da notícia avassaladora que tenho para te dar. Imagino o que dirás quando souberes que, de repente, a Terra foi obrigada a parar sem estar preparada para enfrentar a nova realidade. Independentemente de classe social, cor e raça, milhares de mortos já são contados nas grandes metrópoles sem que, pelo menos, tenham tido o direito de se despedir dos familiares.

Confinados, os vivos se deparam com a urgência de buscar novas alternativas que os mantenham saudáveis física e mentalmente, enquanto outros tantos não conseguem, ainda, acreditar no que está acontecendo, expondo-se e expondo todos à contaminação pelo novo coronavírus. As dificuldades que temos em enxergar realidades que abalam as nossas certezas são grandes; maiores ainda são as de mudarmos o roteiro ao qual estamos radicalmente apegados.

Uma visita ao passado, talvez necessária para nos fazer enxergar que o caminho escolhido estava errado, diz: “Para, olha à tua volta, escuta tua intuição, presta atenção: para que essa corrida desenfreada em busca de fazedores de mentira – dinheiro e poder? Fica em casa, conversa mais com tua família, te preocupa com as condições em que vive teu semelhante, te alimenta melhor, para de produzir lixo e de deixar a tua sujeira para o outro limpar”.

Passado o primeiro impacto, Clarice, começamos a fazer uma grande reflexão e a escutar boas músicas, ler bons livros, assistir bons filmes e programas; fazer serenatas nas varandas, aplaudir os profissionais que arriscam suas vidas, todos os dias, para nos abastecer de alimentos e cuidados, e a entender as fragilidades, agora expostas, de acordo com as características culturais, sociais e ambientais de cada canto do planeta. Afinal, acordamos. Saímos do torpor que nos impedia de interagir uns com os outros de forma mais humana.

Na maioria das grandes cidades da América do Sul acrescente-se à falta de planejamento urbano adequado, a concentração de renda geradora da desigualdade social; a falta de uma educação de qualidade, que permitisse à população a escolha de bons representantes para comandar o país e oferecer ao cidadão o que ele precisa para atender, pelo menos, às suas necessidades básicas de sobrevivência, com decência. Mas o espólio da colonização, por aqui, ainda pulsa forte em forma de dominação e poder. A receita de enganar tolos é: fantasie-se de honesto e pronuncie palavras que todos gostariam de ouvir.

Não sei como estão as coisas na Ucrânia, tua terra natal – de lá, pouco ou quase nada sabemos, a não ser através de conhecidos. No Recife, local ao qual tu te referias com tanta ternura, dizendo que foi o local onde passastes os anos mais felizes de tua infância, o pior da pandemia se aproxima. O novo vírus surpreende cientistas no mundo inteiro, sofre mutações e se adapta facilmente às características dos locais por onde passa.

Tenho a impressão de que a diferença entre estar vivo ou morto é essa: de repente nos vemos mergulhados numa realidade nova, alheia, totalmente alheia à nossa vontade, mas ligada umbilicalmente às escolhas que fazemos e que trazem consequências boas ou más, a depender de como interagimos com a engrenagem reguladora da vida. Costumamos usar diminutivos para amenizar os impactos do nosso comportamento: não tem problema somente um lixinho jogado nas galerias; uma arvorezinha derrubada para negociar; um gadinho pastando acolá, para exportar; umas comprinhas no shopping, para distrair.

Em pleno século XXI assistimos ao mundo paralisado, a economia destroçada sob o comando de um vírus que causa um resfriadinho de nada, surgido inicialmente no país que tem a maior população do planeta – mais de um bilhão de habitantes a produzir e consumir em excesso, a maioria, supérfluos que dão prazer imediato, mas que, na verdade, não possuem qualquer significado, já que, em seguida, são descartados em detrimento de outros e outros e outros mais.

Ah, Clarice, como eu gostaria de acordar e ver que tudo não passou de um pesadelo! Agora, o Sol já está bem distante do horizonte, no Brasil, e ele não me trouxe essa certeza. Mas trouxe outra: a de que o momento é propício para nos apropriarmos do legado das artes, que será sempre, haja o que houver, a nossa salvação, mesmo depois de sermos atirados de vez ao passado, atingidos por um vírus tecnológico que poderá eliminar o “www” e nos  levar à valorização da solidariedade e do livro de papel, infelizmente, não por opção, mas por imposição.

Nem sei como falar, agora, da importância da tua obra, assunto principal desta carta, mas que acabei me distanciando dele. Como isso teria de ser feito de uma forma tão especial, tão profunda, tão introspectiva, que estivesse à altura da tua criação, deparei-me com a impossibilidade, simplesmente, porque és única. Inigualável até para os que se dedicam há anos, ao seu estudo. Conhecer a tua obra é um processo permanente que dura uma vida inteira.

A habilidade com que expressas os sentimentos não dá para ser compreendida se atrelada a uma forma ou gênero literário específico, porque, nela, ficção e realidade se confundem nas profundezas da alma humana. Dá somente para ser sentida na eternidade de uma escrita que dispensa o diálogo, a discordância, a censura; que abre frestas, janelas e portas em paredes antes fechadas, não havendo mais nada a ser acrescentado, a ser dito.

Pensando bem, agora entendo porque dediquei tantos parágrafos ao assunto que fez o mundo parar, ao invés de entoar hinos de louvor à escritora e sua escrita.

Sinta a admiração e o respeito que tenho por ti, Haia-Clarice Lispector, e pela tua obra – pão e vinho; necessidade e prazer; cura e fortalecimento para a alma dos confinados nas incertezas do amanhã.

Salete Rêgo Barros, cidadã do mundo

P.S. Aguardo notícias sobre a repercussão da chegada dos que não conseguiram vencer o vírus, por aí. Será que essa volta forçada ao passado permitirá o conserto dos nossos erros? Se for do jeito que estou imaginando, o bem vencerá e vivermos todos irmanados em torno de um objetivo comum: a felicidade.

 

SALETE RÊGO BARROS é arquiteta (UFPE), parapsicóloga (IPPP), editora (Novoestilo Edições do Autor), produtora cultural executiva (Ponto de Cultura Nordestina), presidente da Rede de Associados Letras & Artes (LETRART). Membro de várias entidades literárias. Organizadora de diversas coletâneas. Autora de artigos de opinião, prefácios, editoriais e orelhas de livros. Idealizadora dos projetos: Agenda do poeta, Abril de Monteiro Lobato, O fio da meada – artes e ofícios, Semear letras & artes e FELIPPA – Feira de Literatura do Poço da Panela (a executar). Autora de cinco livros, todos publicados pela Novoestilo Edições do Autor. O mais recente, Fiat lux, publicado em 2020.

 

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Acesse o Edital de participação da Coletânea Cartas a Clarice Lispector

https://culturanordestina.com.br/ii-coletanea-de-memorias-cartas-a-clarice-lispector/

3 respostas

  1. Salete,
    Clarice com toda certeza, vai agradecer sua carta tão lúcida , o seu amor pela literatura,e, principalmente, a iniciativa lembrar -se dela fazendo está coletânea. Eu adorei.participar na coletânea de Monteiro Lobato, não perderei está.
    Nos pernambucanos temos uma dívida com Ela, que sentia -se pertencente ao Recife. Tudo que fizermos em prol de sua memória merece ser louvado.
    Parabéns pela carta e pela iniciativa.

  2. Salete, ao ler sua carta me vi dentro de um filme. Engraçado como até com a gravidade da situação estamos nos habituando. Recebi todas as notícias como se as não tivesse sabendo, ou seja, pela leitura de Clarice, que, certamente, sentiu o impacto das suas palavras e a delicadeza e admiração ao escrever sobre sua obra.
    Maravilhoso fazer parte da coletânea que marca os cem anos de Clarice, mesmo em um momento tão delicado para a humanidade. Beijo e parabéns, cidadã do mundo.

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