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Diz tu, que fome tens?

 

Onde dói além do bucho que não é o teu? Onde as entranhas se procuram buscando saciar fomes que o calar só incendeia? A humanidade se perde enquanto tu ficas triste degustando pratos feitos, refeitos, enfeitados de euforias, brindando às fomes de cada dia com taças manchadas de sangue dos corpos sem vozes, sem vez, sem nomes…

Que importa tua indigna ação, se mãos fortes tapam bocas inocentes, dominadas, desprotegidas e de tudo carentes? Que importa se páginas deste livro sejam gritos inconformados de gente que come todos os dias, de gente que tem nome assinando páginas frias e que faz das letras uma luta sem sangria? Quantos litros de sangue terão que ser derramados para que sequem as lágrimas do mundo?

É tão mais enfeitadinho agora chamar de “insegurança alimentar”.  A FOME é feia, não é? A fome é triste, é a pior dor, a de não ter força para se sustentar, para simplesmente viver e se sentir gente.

Sim, pode ficar indignado, ofendido, abalado. Que importa, se as águas mortíferas não te cobrem nem te cobram?

Não sabes dos dias onde o sol são foices. Responde-me então o que fazer com tantas palavras se cá estou tão longe de tua realidade que nem mesmo um só Deus sabe do meu existir?

Ah, como queria ser riso, nem que fosse um eco dos teus. Seria riso tímido, entre morte e vida (não é, Severina?), riso que só chegaria aos ouvidos das almas perdidas.

Diz tu, que fome tens, porque tenho a fome maior, a fome de não ver um prato de comida. Dessas comidas que tu jogas fora ao final do dia ou ao término das tuas festas, onde tanto se come e de tudo.

Na maioria das vezes minha fome básica é de alimento, sabes? É o mínimo que preciso para esperar o amanhã, pois não há sonho mais simples que um prato de comida.

Tu não sabes o que é sonhar com um prato feito que não venha dentro de um saco de lixo preto, com restos azedos das tuas iguarias.

Sou rosto marcado, além de nunca conhecido. Olhos que jamais fitarão os teus, pois desvias sempre do meu caminho. Caminho paralelo dos pés cansados do pisoteio das uvas, para que sejam servidos teus cálices de vinho.

Não tenho a licença da fala, os dias me são histórias mal contadas.

Sou par de olhos semimortos que todos os dias reluta antes do abrir. Sou vazio cheio de desgosto, levados por um trem sem trilhos ou fumaça, comandados pelos que tem a posse de mim.

Estou a um empurrão teu para o abismo, talvez um leve toque e eu rolo abaixo.

Estou a um tiro, pois sou sempre alvo. Nem mesmo ouso correr para chegar mais depressa. Sou suspeito de um tudo e pago dia após dia a conta por existir, pois antes de tudo, já sou um eliminado na mira dos que ainda não me encontraram para jogar em mim frustrações, deleites de almas rasas, alimentadas por uma sociedade preconceituosa, violenta, vazia, ignorante e sem empatia. Pois se houvesse empatia haveria luta, inclusive tua, que jamais se esquecerá destas palavras por sequer tê-las lido.

Junto com essa fome básica me recorre uma fome imensa que me dói a alma e me faz resistir, mas ainda assim é de apenas um prato. Um prato que me alimentaria por toda a vida. Um prato cheio de solidariedade coletiva, respeito, igualdade, trabalho, lazer e arte, temperado com amor e justiça social.

Tuas moedas, que caem nas minhas mãos na porta da igreja, não salvam nem minha fome nem tua alma. Acompanham apenas o formato da hóstia, que carrega o nome de todos nós. Minha barriga dói todos os dias e não apenas no dia da tua missa, onde com mísera moeda tu tentas fazer justiça. Não tenho como pagar o dízimo e minha igreja é aqui, sob céu aberto, onde sou excluído e dizimado todos os dias.

Agora diz tu, que fome tens?

 


Taciana Valença

é pernambucana do Recife, administradora de empresas por formação (UFPE-1988), apresentadora, assessora literária, escritora, compositora, poeta e produtora cultural. São de sua autoria os livros infantis Malu em Apuros e Especialmente criança, o livro FEBRE (poemas) e Sumiço do ovo (crônicas), além de ter participação em diversas antologias dentro e fora de Pernambuco. É responsável pelo projeto Conversando Perto de casa, na Livraria Jaqueira, editora da Revista Perto de Casa, idealizadora do projeto Navegando em poesias, apresentadora dos projetos Destaque Literário (da Cultura Nordestina Letras & Artes) e Conversando Perto de Casa na Cultura Nordestina, além de ser apresentadora e entrevistadora no projeto Livro Encena.

Links onde são encontrados um pouco do seu trabalho literário:

https://ensaiandopoesias.blogspot.com/

https://www.recantodasletras.com.br/autor.php?id=27346

https://www.facebook.com/taciana.valenca.5/

https://www.facebook.com/tacianalvalenca

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Respostas de 19

  1. Muito bom participar dessa coletânea. São muitas fomes a serem saciadas. Diz tu, que fome tens?

    1. Texto impactante que nos faz parar e refletir sobre a dura realidade de tantos que vivem ao Deus dará, com fome, sem direitos, sem identidade, jogados no mundo. E também pensar nos vários tipos de fome que existem. Fomes do corpo e fomes da alma. Parabéns, Taciana!

  2. Eita. Li seu texto e comentei no grupo kkkkkk
    Vou repetir agora :
    Parabéns Taciana. Texto forte e que dá dor e vergonha. E parabéns também para nós que fazemos parte do mesmo grupo

  3. Fome de ter o que dizer. Escrever com a fome das fomes alheias . Muito bem, Taciana!

  4. Oi Taciana já pedi o regulamento da Coletânea e tentarei participar. Quanto ao texto que você apresentou estou de acordo. Só que por trás dessa miserabilidade, de parte da população do planeta, existe de um lado a falta de espiritualidade, civilidade, solidariedade, interesse humano, mas, também do outro lado: zero de amor próprio, motivação, educação e busca de alternativas para a melhoriar a si mesmo ou a outram nessa ²selva de pedra em que vivemos.

  5. Oi Taciana já pedi o regulamento da Coletânea e tentarei participar. Quanto ao texto que você apresentou estou de acordo. Só que por trás dessa miserabilidade, de parte da população do planeta, existe de um lado a falta de espiritualidade, civilidade, solidariedade, interesse humano, mas, também do outro lado: zero de amor próprio, motivação, educação e busca de alternativas para a melhoriar a si mesmo ou a outrem nessa ²selva de pedra em que vivemos.

  6. Parabéns Taciana, muito sucesso na sua trajetória, que possas compartilhar cada vez mais seus escritos mundo a fora!
    Sinto-me grata por ter o privilégio de ler seus escritos!

  7. Assino embaixo, Taciana. Parabéns pelo texto. São muitas fomes, a maior delas, sentida por milhões de brasileiros, a fome de comida, parece não incomodar aos que têm de sobra e acumulam cada vez mais, embora o direito à alimentação figure entre os direitos humanos universais.

  8. Parabéns Taciana.
    São tão necessários os bons alimentos para o corpo e a alma que isso nos motiva a estudar, dedicar o tempo a refletir, dar nosso saber na pretensão de contribuir para os demais colher.

  9. Parabéns pelo seu texto!
    Um cenário que você pinta dos humilhados, desencantados e desumanizados, produtos na nossa sociedade separatista.

    Desafortunados que permeiam ruas e vielas das nossas cidades, e que você, Taciana, grita com eles, através de suas palavras de consciência, de dor e de apelo.

  10. …tuas moedas caem em minhas mãos, na porta da igreja , não salvam nem minha fome e nem tua alma….

  11. Boa tarde, Taciana

    ¨É tão mais enfeitadinho agora chamar de “insegurança alimentar”. A FOME é feia, não é? A fome é triste, é a pior dor, a de não ter força para se sustentar, para simplesmente viver e se sentir gente.¨

    Realidade miserável essa.
    Mas eu tenho esperança em dias melhores. Hoje estou particularmente confiante, depois do 7 de Setembro festejado de forma civilizada e digna. Viva a Democracia!

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