Humanização da consciência
Àquela hora, a lã, o corpo e a palha pareciam uma coisa só. Por tímido que fosse o movimento, o ar penetraria a carne atingindo os ossos. A voz (im)piedosa rasgava o silêncio da madrugada deixando passar o cheiro do leite fervido: É hora, a mesa está posta! Acorda, menina, avia, o sino toca, o pão e o leite vão esfriar. Não quero ir, por favor, só hoje, quero ficar, amanhã eu vou, juro por Deus. Não, você vai levantar e é agora. Quer ir para o inferno? Usar o nome de Deus em vão é pecado mortal, vai ter que se confessar. Levanta daí, este é o último aviso!
Mãos entrelaçadas cumprem o rito que poderia ser seguido até de olhos vendados: a travessia do beco fedido, a descida da ladeira esburacada e a chegada à imponente Matriz de São José. Ao longe se ouve o código sineiro chamando os fieis. Preguiçosamente, o nevoeiro se desfaz revelando vultos bem agasalhados entrando apressadamente pela porta principal. Em silêncio procuram os lugares que restam nos bancos da nave central. Antes de sentar, flexionam o joelho direito mantendo a cabeça inclinada, por instantes, em sinal de respeito. Lágrimas aquecem as bochechas rosadas enquanto o pensamento, agarrado às franjas do ló preto rendado, se aquece na lã do cobertor xadrez e na palha do colchão coberto por chita florida que ficou para trás.
Como acreditar que tamanha malvadeza venha de um ser que ama seus filhos, tudo vê e tudo sabe? Será preciso arder no fogo do inferno se não for à missa aos domingos, àquela hora? Dizem que tudo acontece com a Sua permissão, mas, por séculos, humanos foram retirados de seus lares e amontoados nos porões infectados dos navios negreiros. Após longa travessia, os que sobreviviam eram expostos, pesados e vendidos como qualquer outra mercadoria, para servir aos seus senhores com o aval da Igreja e do Estado, em atendimento a interesses (in)confessáveis. Eram marcados a ferro em brasa, chicoteados, presos ao tronco e usados de todas as formas. Mas nada disso importava, porque o lucro dos senhores só estaria garantido graças ao trabalho escravo.
De frente para o Santíssimo e de costas para os fiéis, o sacerdote celebrava em latim. Havia recebido uma procuração para ser o representante do (in)visível na Terra. Adquiriu autoridade para julgar, perdoar e castigar o pecador em confissão, além de mandar os desobedientes para o fogo eterno. Bebe o vinho e engole a hóstia consagrada – o sangue e o corpo vivo do Cristo –, enquanto do lado de fora os (des)convidados da ceia do Senhor se amontoam nas calçadas implorando por agasalho, um pedaço de pão dormido e uma xícara de café quente.
Essa história fez parte do cotidiano de inúmeras famílias no século passado, época em que a Igreja Católica exercia forte influência sobre a sociedade, sobretudo nas cidades interioranas sob o domínio de senhores de engenho e sua descendência. Eram cenas de causar arrepios e desassossego aos olhares mais atentos que conseguem enxergar na lógica senhorial a figura do opressor e a do oprimido.
Propagar pobreza, sofrimento e conformismo como passaportes para a entrada no reino dos céus é prerrogativa de religiões ocidentais. A partir de 1521, quando o monge alemão Martinho Lutero foi excomungado pelo papa Leão X por ter se rebelado contra a prática das indulgências, que ofereciam o perdão da Igreja Católica em troca de doações em dinheiro e bens, ações beneficentes e jejum, para que os fieis alcançassem a salvação, houve o racha no catolicismo, que deu origem ao protestantismo. No entanto, o expediente das indulgências foi atualizado e a sua essência mantida: ludibriar a boa-fé das pessoas transformando igrejas em mercadões da fé.
Não há como (des)vincular a desigualdade social, causadora dos males da fome, que incluem a (des)nutrição e a fata de moradia, saúde, educação, lazer e trabalho digno, das instituições Estado e Igreja que se retroalimentam de interesses que andam na contramão do desenvolvimento e da emancipação do ser humano, contidos na simbologia da comunhão. Ao que tudo indica, a mensagem cristã ainda não foi suficientemente compreendida para ser vivenciada em toda a sua plenitude no cotidiano.
As necessidades básicas representadas pelo pão (alimento do corpo) e pelo vinho (alimento do espírito simbolizado por conhecimento, liberdade, justiça, afeto, solidariedade, etc.) se fazem presentes no ritual católico para que as palavras do Mestre sejam lembradas. E para que tenham vida em abundância, todos deveriam participar do banquete.
No primeiro quarto do século 21, o ser humano ainda se vê condicionado ao discurso que dá sustentação à escravidão moderna, mantenedora do sistema de exploração dos recursos naturais de forma irresponsável e que, fatalmente, levará o planeta à extinção total até o final do século, afirma a ciência. Desastres climáticos, fome e guerra já atingem um grande percentual da população mundial, e apenas 1% detém toda a riqueza produzida pelos 99% restantes.
O que antes era uma possibilidade já é realidade, e a construção da consciência humanizada virá como resposta à crise radical que ameaça a sobrevivência de todas as espécies que habitam o planeta Terra, independentemente de credo ou ideologia política. O ônus e o bônus, advindos da postura de cada humano, atingirão a todos, sem exceção.
Fome de quê? Questionamento inquietante a ser feito para que os ensinamentos deixados por mensageiros do Ocidente ao Oriente sejam compreendidos e incorporados à construção de uma nova consciência humanizada, criadora de valores que estejam em consonância com o Humano, a Vida, a mãe Terra e o Universo, como oportunidade única de revisão dos dogmas e crenças criados para a perpetuação da servidão humana e do egocentrismo. Fiat lux!
Salete Rêgo Barros
É co-organizadora da coletânea Fome de quê?, arquiteta, editora-fundadora da Novoestilo Edições do Autor e produtora cultural executiva do Ponto de Cultura – Cultura Nordestina Letras & Artes. Preside a Rede de Associados Letras & Artes – LETRART. Livros publicados: Interações mente-organismos-ambiente (1996 – esgotado); Guia do Escritor passo-a-passo (2003 – esgotado); Na ponta da língua (em co-autoria) (2007 – esgotado); Tempo de Memórias (2007); A intuição de Pandora (2009, 1ª edição; 2011, 2ª edição); Lá sou eu entre a imensidão e a eternidade (2019); Fiat lux (2020); Gena, a menina que amava livros – a história que Lobato não contou (2021); Odara (2022); Roteiro (2022).
Respostas de 5
Parabéns Salete! Desde a época de senhores de engenho que as pessoas de bom senso vêm lutando pela desigualdade social.
Sim, creio que as pessoas de bom senso lutam contra a desigualdade social.
Sim, Salete, nunca é demais escrever sobre a fome de igualdade. Parabéns!
Sim, seguimos então evoluindo somente com as máquinas, tecnologia?
Ando cansada de toda essa hipocrisia quanto a esse tal… sistema.
Boa tarde, Salete
Parabéns pelo texto, atento aos desmandos que aprofundam as desigualdades sociais.