Assistimos ultimamente ao discurso patriarcal “Deus, pátria, família e liberdade” como sendo um combo de credibilidade de pensamentos, palavras e obras dos interessados diretamente nesta propaganda de bons sentimentos: fé; patriotismo; garantia; recompensa.
A chegada do mês de março lembra o passado de luta das mulheres pelo direito ao voto, por condições dignas de trabalho, e equiparação salarial de gênero. Essa celebração nos leva a uma reflexão a respeito do papel da mulher na família e na sociedade, assim como à necessidade de constante atualização do embate pela transformação: agora, principalmente, contra a violência doméstica, o feminicídio, o preconceito de cor e gênero, e a falta de representatividade em cargos de poder. A luta das mulheres é antiga, possui raízes históricas profundas, e está em constante movimento.
Hoje, 8 de março de 2024, a França se torna o primeiro país a colocar o direito ao aborto em sua Constituição, atendendo às reivindicações das ativistas francesas. No Brasil, o aborto é permitido por Lei em casos de gravidez decorrente de estupro, risco à vida da gestante ou anencefalia do feto – situações em que o procedimento deve ser oferecido gratuitamente pelo SUS. Em casos não-permitidos, o aborto é feito na clandestinidade, especialmente por mulheres de baixa renda, desesperadas com a possibilidade de ter mais um filho para sustentar, muitas delas vítimas de relacionamentos abusivos.
O maior número de mortes ocorre nos casos de “falha na tentativa de aborto” – são abortos incompletos, em que a internação ocorreu para finalização do procedimento. Nesses casos, a cada 28 internações, uma paciente morre e o risco de morte é 140 vezes maior do que em todas as outras categorias juntas. Segundo especialistas, trata-se, pois, de mais um problema de saúde pública a ser enfrentado pelo Estado com programas de prevenção e redução da gravidez não intencional.
A celebração do Dia internacional da mulher, em 8 de março, instituída em 1975 pela ONU, faz lembrar os acontecimentos que se intensificaram durante a revolução industrial, quando as mulheres entraram no mercado de trabalho em condições precárias, cumprindo longas jornadas de até 16h por dia, 6 dias por semana, incluindo o domingo, quase sempre necessário.
Trabalhadoras russas mobilizaram cerca de 50 mil pessoas numa campanha inserida no movimento socialista, por melhores condições de trabalho. As ativistas reunidas em passeatas contra a fome e a guerra, deram o pontapé inicial na Revolução russa de 1917.
A família, como é hoje constituída, surge no final do século 19 / início do século 20, decorrente da necessidade de uma mão-de-obra mais produtiva, de atendimento às demandas do sistema em pleno desenvolvimento, já que a capacidade de trabalho da mulher é reduzida durante o ciclo menstrual, a gravidez e a amamentação. E para que isso fosse possível era necessário retirá-las do chão das fábricas e aumentar o salário dos homens o suficiente, para que eles pudessem sustentar a família enquanto a mulher não trabalhava. Elas deveriam, “apenas”, cuidar da prole, dos afazeres domésticos, e de satisfazê-los sexualmente, para parir os filhos que Deus mandasse, já que os métodos contraceptivos eram criminalizados pela sociedade e condenados pela Igreja, para que a demanda futura da mão-de-obra trabalhadora estivesse garantida.
Torna-se então, a Família, a instituição garantidora da reprodução da força de trabalho. E o trabalho doméstico não-remunerado, realizado pela “Rainha do lar-doce-lar”, passava a ser um dos pilares de sustentação da sociedade, uma vez que é o produto mais precioso do mercado, omitido como parte determinante do ciclo de produção – a geração futura da mão-de-obra trabalhadora.
No aconchego do lar, mulheres de classes mais abastadas passaram a ter direito a uma mesada dos maridos, para que pudessem comprar batons e bibelôs nas horas vagas – as que não tinham a mesma sorte eram obrigadas a receber presentes, em datas especiais, nem sempre de seu agrado. Ainda havia outra categoria – as que se submetiam à reclusão, para que não fossem abordadas por outros homens, quando desacompanhadas. Sem ter como se manter respeitada, fora do casamento, a maioria optava por uma relação dominadora e frustrante, compensada pela estabilidade social e financeira proporcionada pelo homem. Daí a corrida dos pais por um “bom-partido” para suas filhas.
Jovens solteiras e meninas, negras, eram requisitadas para auxiliar nas tarefas domésticas da classe alta e média, e enfrentavam uma carga horária de trabalho, exaustiva, que ia das primeiras horas da manhã às altas horas da noite, quase sempre em troca de casa, comida e proteção – quando muito, era incluída a alfabetização. A recompensa era ser apresentada às visitas “como se fosse um membro da família”, não uma empregada. Muitas envelheciam servindo a várias gerações da mesma família, renunciando à própria vida de forma abnegada.
Já a mulher mais ousada enfrentava a fúria do marido e a condenação da família, da sociedade e da Igreja – criava asas e ganhava o mundo. A compositora, pianista e regente, Chiquinha Gonzaga, foi uma entre outras que optaram por enfrentar a sociedade extremamente machista e conservadora, pagando o preço alto da liberdade, em uma época em que as mulheres não tinham o direito de pensar e agir por si mesmas. No entanto, a musicista não se intimidou com as afrontas dos críticos de seu tempo.
A música também foi determinante para a realização da cantora Elza Soares, que apanhava do pai, foi obrigada a casar-se aos 11 anos com o seu abusador, e aos 13 já era mãe. Certa vez, ao chegar ao palco do show de calouros de Ari Barroso, na Rádio Tupi, pesando 35 quilos, vestida numa roupa chique emprestada da mãe, que pesava 65, foi perguntada: De que planeta você veio, minha filha? E ela respondeu: Venho do mesmo planeta que o senhor, Seu Ari: do planeta fome.
Ainda hoje, o patriarcado continua atuante nas famílias, no trabalho, na escola e nos demais setores de uma sociedade que não conseguiu se libertar de conceitos e preconceitos mofados, estabelecidos para manter o domínio de um sistema que transforma tudo em mercadoria, inclusive os signos da fé cristã.
Houve avanços significativos nas relações de trabalho da mulher branca e negra, porém, ainda falta muito para que elas cheguem em pé de igualdade para concorrer com o homem branco. Basta que se observe a fotografia do corpo docente das instituições de ensino superior, do espaço político, da indústria, do comércio e demais setores que ainda priorizam a contratação do homem branco como representante da competência, civilidade e europeização, elementos necessários ao sucesso em cargos de importância relevante para a sociedade capitalista.
Para o modelo de sociedade vigente é conveniente que a estrutura patriarcal seja mantida, pois dela depende a subordinação da sociedade aos caprichos do conservadorismo – “Deus, pátria, família e liberdade”.
“Por um mundo onde sejamos socialmente iguais, humanamente diferentes e totalmente livres”. Rosa de Luxemburgo.
Salete Rêgo Barros
Produtora cultural
Respostas de 2
Excelente. Histórico e contemporâneo. Deve participar de seu próximo livro de crônicas. Vou compartilhar com algumas pessoas.
Adorei o livro “Princesa do Desejo”, de Andrew Philip Collins. É um romance revelador, sobre os problemas da família e da sociedade do Brasil. Encontrei na internet, no site scribd.com. Recomendo. Uma leitura muito relevante.