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Milagrâncias, por Bruna Estima Borba

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Bruna Estima Borba é natural do Recife. É escritora de novelas e contos ambientados em sua cidade. Sua literatura é contemporânea contendo, de passagem, referências históricas. A narrativa é leve tendendo para a comicidade, sem descuidar de sentimentos e emoções. Professora universitária com doutorado em Direito, é autora de contos e das novelas “Tempo”, “Vivendo as circunstâncias” e “O Edifício Estrela”. Sua obra, já premiada pela Academia Pernambucana de Letras, está disponível em livro impresso e em meio virtual nos sites Amazon. Contatos: E-mail: brunaestimaborba@gmail.com; Facebook: https://www.facebook.com/ bruna.borba.501; Instagram: @bruna_estima_borba.

Milagrâncias

 

– Bom dia. Sueli está?

Senti uma enorme vontade de mentir.

– Está, mas não pode atender agora.

– Posso deixar um recado?

O impulso aumentou.

– Pode sim, mas só vou conseguir dar o recado a mamãe quando ela voltar do curso de astronauta.

– Como assim? Onde está sua mãe?

Prossegui dando asas à imaginação.

– Ninguém sabe, é segredo. É um projeto internacional, uma viagem interestelar rumo aos anéis de Saturno. Ela será a primeira mulher a ir tão longe.

A amiga de minha mãe perguntou, preocupada:

– E quando ela volta?

Ia responder, mas mamãe chegou e tomou o celular de minha mão.

– Desculpe, Magda. Amandinha vive inventando estórias, não sei mais o que fazer com essa menina.

Eu acabara de aprender os nomes dos planetas e me encantara com o misterioso Saturno. Além do mais, mamãe era minha heroína, nada mais adequado que fosse convocada para essa extraordinária missão.

– Amanda, você precisa parar de inventar.

– Não consigo. É sem querer, quando acordo já estou cheia dessas ideias na cabeça, não tenho culpa.

– Acontece que quando você fala essas coisas, elas se transformam em mentiras. E mentir não é certo. Prometa que vai guardar essas milagrâncias com você.

– Está bem, mamãe. – Menti mais uma vez.

Na verdade, eu não conseguia impedir os pensamentos. E, uma vez que nasciam, adquiriam autonomia, moviam-se por si próprios. Quando me dava conta, já haviam saído pela boca, como a água corre sobre o leito do rio, como o vento entra pela fresta da janela.

Os primos não perdoavam:

– Lá vem Maria mentirinha.

Meu pai foi mais duro:

– Você não é mais criança. Pare de mentir. Quando as pessoas falam com você têm a expectativa de ouvir a verdade. Não as decepcione.

Fui mandada para o quarto mais uma vez. A porta fechou. Eram duas da tarde e só sairia às seis da noite. Mais que o castigo, a reprimenda de meu pai me magoou. Não queria decepcioná-lo.

Precisava encontrar um meio de controlar aquelas ideias que surgiam em minha mente. Sentia que explodiriam se não as expulsasse jogando palavras como torpedos sobre atônitos ouvintes. Uma angústia enorme tomou conta de mim e comecei a chorar. Adormeci e sonhei que escrevia um dicionário. Não seria como os outros, claro. Nele só haveria palavras inventadas. Deveria começar pelo A, mas decidi que homenagearia minha mãe e iniciei com ‘milagrância’. Escrevi: “milagrância (substantivo feminino), fato imaginário contado como verdade aproveitando-se da ignorância e credulidade das pessoas”.

Li e reli aquela definição. Encontrei, subitamente, a solução. Passei a pôr no papel minhas milagrâncias. Tornei-me escritora.

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