INDAGAÇÃO
Arrancaram mais uma árvore hoje
pelando ainda mais a cidade
Nem plantaram outra em seu lugar…
Quanto tempo tinha de existência?
Que será de nós nesse sol forte
evaporando no calor do asfalto?
Quanta sombra nos resta?
E puro ar?
RESTANTES
Quando uma pessoa vive de verdade, todos os outros também vivem.
(Clarissa Pinkola Estés, A ciranda das mulheres sábias)
Olhou a sua volta. Aquele espaço, além da caverna que os abrigava, era um monte de escombros. 360 graus de destroços formando montes e montanhas de entulhos, rios e lagos de detritos, um imenso lugar de sacrifício que se tornara aquele planeta!
Andava com cuidado pelo chão de lixo batido, embora seu pé de solado grosso fosse resistente, assim como suas mãos cinzentas com unhas escuras e grossas como garras elas ajudavam a retirar os entulhos que obstruíam sua passagem, a se defender dos bichos e a catar seu alimento. O corpo ossudo, todo coberto por uma crosta cinzenta, era sua única vestimenta. Deste ser sem cor, sem pelos, sem viço, brotavam dois olhos vermelhos secos e uma boca que era uma linha reta e desdentada. O que a diferenciava dos outros era apenas a estatura. Seu corpito era metade dos outros seres cinzentos… e, talvez, um segundo item: as boas lembranças que não arredavam o pé da sua cabeça.
A vida naquele planeta se resumia a dois turnos. Pela manhã, no apagado dia, aqueles seres saiam de seus esconderijos lentamente para buscar o possível para sobreviver naquela terra árida, catando dos entulhos. À noite era tempo de se recolher na loca, como aqueles seres habitantes de grutas, buracos, cavernas, buscando a proteção do frio invernal e da escuridão sem fim que tomou aquele habitat.
O sol era uma luz opaca por trás do véu gris do dia. Mesmo assim era um morno fiozinho de esperança para aqueles restos dos seres que se arrastavam em busca da luz, se desviando de baratas e outros insetos que se espalharam desordenadamente após o grande escuro que tomou o planeta, logo depois da cortina de fumaça negra ter coberto aquela terra…
A menina vivia naquele pesadelo fazia tanto tempo… mas havia algo naquela paisagem sinistra que lhe causava um estranhamento, talvez a lembrança do passado distante a tocar uma bela melodia na cabeça. Escutava um som meigo saindo da lembrança do colo de sua mainha, onde ficava até dormir sorrindo. Se via num ambiente friozinho, com cheirinho de flor… Flor??? Conhecia as palavras no seu pensamento, e outras mais, embora fosse uma recordação tão vaga…fruto das visões que surgiam ao dormir.
Via um céu azul, o vento soprando sua face, um banho gostoso na água do rio refrescando seu corpo, o barulho do córrego, das cataratas fazendo bem ao seu ouvido, pescarias num grande oceano verde, subida em um pedaço de pau que tinha uma cor marrom e cobria sua vista com um grande guarda-chuva verde. Dele, pendia um delicioso, suculento e cheiroso ouro que enfeitava aquele bonito e majestoso ser. Aquela bola amarela adoçando a boca e alegrando a barriga… quase que escuta um som de assovios bonitos, como um coro de seres que cruzavam o céu que passam na frente de um lugar colorido onde morava com mamãe, antes do desta escuridão: flores e pássaros! Eram essas palavras que a mainha apontava para ela. Sementes jogadas no mais íntimo do ser.
Ela pertencia ao povo dos restantes. Seres reminiscentes ao caos que se instalou naquele planeta e que jogou quase todos os seres na insipidez desta vida. Seria igual a todos, não fosse essa ebulição interior em seu pequeno corpo de menina.
Ela senta na entrada da caverna para observar a rotina dos restantes que, como ela, vão se arrastando em direção aos escombros à procura do ouro desse tempo insípido: comida enlatada, empacotada e bebida engarrafada. Tudo que resta para sobrevivência. Sua mainha, antes de dormir para não mais acordar, lhe disse no ouvido com voz fraca: Gaia, fique perto do lixo dos supermercados! Apontou para a montanha de destroços a certa distância do buraco em que viviam no começo de tudo.
Era perto desses entulhos que esse povo andarilho vivia até acabar a fonte do alimento, deixando uma enorme vazio de lixo imprestável e alguns corpos fétidos que morreram ao ingerir uma lata ou pacote estragado. Quando o estoque acabava, todos saíam para o próximo entulho. Partiam indo buscar novos escombros. Era tudo silêncio, grunhidos, não havia força para amor, nem para o ódio, naquela existência pálida.
Quando chegava à noite, dos buracos, grutas, cavernas da proximidade, ela podia escutar apenas suspiros e choros fraquinhos, como ela mesma já lançou no ar durante tantas noites, sozinha no frio daquele buraco, até ter coragem de sair e encontrar uma caverna para encostar seu corpinho num canto da parede, para ali ser o seu lugar, sem atrapalhar ninguém. Outros, também se deitavam ali, no fim do dia, sem interações. Os que morriam durante a noite eram arrastados e jogados num entulho mais adiante, deixando os insetos se banquetearem a céu aberto.
Os olhos vermelhos de Gaia lubrificam, quando bate esse estranhamento na sua cabeça, que sobe da barriga para o coração e não é fome… é uma falta de um tempo que não existe mais, que mal se recorda e que faz ela caminhar para o centro dos escombros e na voz mais alta que pode ela entoa um som que escutou bem pequenininha no colo da sua mamãe: Sabiá fugiu do terreiro, foi morar no abacateiro e a menina pôs-se a chamar: vem cá, sabiá, vem cá!
Os demais restantes pararam e sem forças para um gesto maior, voltaram os olhos vermelhos assustados para o céu. Foi nesse momento que a terra tremeu!
Bernadete Bruto é entusiasmada pela poesia da vida, que a faz ler, escrever, recitar poemas. Sua paixão se estende a narrar histórias e criar apresentações performáticas. Em sua trajetória há oito livros publicados em diversos gêneros: Pura impressão, Um coração de canta, Querido diário peregrino, Sessenta e um poemas para uma vida (coletânea de poemas), A menina e a árvore (Infantil bilíngue), Em nome de Rosa: uma quase ficção, De isolamentos: um registro tragicômico (ficção) e Sombria (HQ). Além disso, tem participação em várias coletâneas.
Uma resposta
Uma mestra no que faz e escreve… Parabéns pelo excelente texto. À vida!!