Fatima Brasileiro

Fome de quê?

¨Felizes os que têm fome e sede de justiça, porque serão saciados¨ – Mateus 5:6

Depois de Carolina de Jesus (1914-1977) escrever no diário/livro Quarto de despejo que as coisas todas do mundo ficavam amarelas, quando a fome atingia o limite do suportável, decidi nomear as de sentimento. Com a plena compreensão de que são uma só, e de que a fome física, vivida por ela e pelos seus, carregava o peso da impotência e da desesperança.

Tema recorrente na mencionada obra, a trágica personagem, ironicamente da mesma cor do ouro, morava em todos os barracos e fazia parte do desassossego da favela; a parte mais sofrida, resultante da luta cotidiana para dela se livrarem.

¨Mamãe, vende eu para Dona Julita, porque lá tem comida gostosa!

Essa fome não é monocromática, Carolina. Tenho certeza que seu coração sangrou e tingiu o amarelo, mas você não desistiu da vida. Em homenagem ao seu legado e à mistura desses tons, dou à fome de esperança, a cor laranja.

À de justiça, cabem os diversos tons de verde, para que se expresse em plenitude e na medida certa; em todas as circunstâncias, e sem muita demora.

Porque nada pode ser mais desesperador e escuro do que não crer, talvez o preto pudesse nos dizer da fome de fé, de perspectiva. Já o branco, quem sabe fosse a cor da humanidade, do resgate da nossa essência.

O dourado, penso que combina com a fome de dinheiro e poder, enquanto a prata, pode muito bem representar a de igualdade social. É imperiosa a imediata partilha com os que sobrevivem de migalhas. Partilha dos bens honestos, não lhes interessa a afronta do colar de 3.161 diamantes, e seus assemelhados.

À fome de liberdade, primeira e maior, atribuo a cor azul, em todos os matizes. O céu e o mar se confundem, quando voamos nas suas asas.

A suavidade do rosa pode falar da fome de pertencimento e, por extensão, das de intimidade e aconchego. Tem algo mais gratificante do que estar saciado nesse campo?

Deixo de fora o vermelho, a minha favorita, pois relacioná-la à fome de paixão, não parece justo. Transbordante de significados, nela estão representadas as mais vibrantes emoções – pela política, no escarlate do sangue, na lingerie das apaixonadas e até no Pastoril. Aqui cabe um parêntese, para reafirmar que permaneço fiel ao encarnado, apesar das subsequentes vitórias do cordão azul. Se também a isso eu não puder chamar de amor…

Nas delicadas construções do carinho, são muitas as nuances. No entanto, tal e qual um espelho corroído, nenhuma cor é refletida pela fome de afeto. Incapaz de produzir pigmento, de tão sombria e estéril, consome-se em si mesma, no mar de impossibilidades em que vive mergulhada.

Voltando ao Quarto de despejo: …¨Contemplei a paisagem. Vi as flores roxas. A cor da agrura que está nos corações dos brasileiros famintos¨.

Também não gosto de roxo, Carolina. E a desgraçada da fome, inconcebível em um país tão rico, continua a tirar o sono de muitos. ¨… Deixei o leito às 4 horas. Eu não dormi porque deitei com fome. E quem deita com fome não dorme¨.