Crônica fome
O cobertor escuro ainda esfria o sono dos tetos. Dos tetos! Porque não há sono para as pontes, os mosaicos portugueses, o pátio da igreja. Então, uma xícara de água, uma fatia de ódio, outra fatia de raiva e nem precisa amassar… Alma saciada! E segue seu caminho, de pé, parado, em meio a outras, chacoalhando como que cumprindo as indicações prescritas para uma mercadoria qualquer: “agite antes de usar”.
Mas a barriga, acordada, ronca.
Já sem aquele cobertor, tudo vai mais quente. Os cães reclamam a atenção de uma mãe e um corpo despenca do céu: — Um urubu, na certa, que anjo escuro não tem. E se tinha era mal, perturbou a paz das alturas e foi tombado de lá. Toma seu lugar agora cá embaixo, na pechincha penosa, suplicante, a uma feirante cega que na barraca negocia carnes: — A negra ainda é a mais barata. Já a branca é corte nobre, corte real.
O ventre trepida.
O calor aumenta e as sombras vão procurando abrigo debaixo dos pés. A essa hora a criança sabida não come doce porque senão perde o apetite, nem mesmo um bem pequeno nem um de 9 mm. Aos dois anos ainda se tinha isso e muito mais a aprender, mas agora é só fastio.
As tripas dão um nó.
A essa altura já nem espanta o dia tingido de vermelho. Mas o saco preto na esquina… alguma coisa se contorce ali. Uma sensação cresce. A atenção aumenta. — Tem um bicho aí! A tensão aumenta. O lixo geme. Não é rato, nem gato, nem cão.
A fome devora.
da Silva
Trabalhador. Vende o almoço para comprar a janta.
Luta contra os seus iguais numa existência precarizada em que vive toda a agudeza da miséria humana, a constante fome de tudo.
Uma resposta
Parabéns pelo texto, de extrema sensibilidade.
Um retrato sangrento, em alta resolução, da injustiça social.
¨…Mas a barriga¨, acordada, ronca… ¨