Haja fome…
Maria levanta-se e, apressadamente, prende os cabelos brancos e crespos num cocó. Em seguida, sai para lavar roupas acocorada nas águas do rio que corre atrás de sua casa, enquanto os netos dormem para enganar a fome, deitados num lastro de espuma ao lado do fogão. Com a bacia de alumínio na cabeça, ela caminha devagar até alcançar o varal improvisado na rua estreita em frente aos casebres que disputam cada palmo de chão batido, aspirando o perfume suave das peças lavadas. Esfregar a sujeira com sabão amarelo, até deixar as roupas limpas, macias e perfumadas, e depois colocá-las ao sol para secar, é um trabalho realizado com prazer, porque ela gosta de ouvir os elogios que acompanham o valor pago na devolução da trouxa de roupas lavadas e bem passadas.
A imaginação conduz a senhora até o interior das casas para flagrar a satisfação das patroas ao arrumar as roupas nas gavetas da cômoda e nos cabides do guarda-roupas, peça por peça. Aquilo havia se tornado um hábito por ser um alento para a tristeza que invadira seus dias após a prisão da filha ao ser flagrada furtando no supermercado, para alimentar os filhos de 4 e 6 anos, que haviam perdido o pai para o tráfico de drogas.
Além da vergonha, a mulher não tinha mais o que responder às crianças quando elas perguntavam pela mãe, pelos biscoitos e iogurtes que ela trazia ao final da tarde, após bater de porta em porta à procura de um trabalho digno. Decididamente, aquele não era o destino desejado para a sua velhice, depois do sacrifício de uma vida inteira para dar condições à filha de estudar em busca de um futuro melhor. No entanto, o ambiente em que viviam e a cor da pele não contribuíam para a realização de seus sonhos. Apesar de tudo, nos momentos em que adultos retiravam restos de comida do lixão, para alimentar suas crianças, ela se sentia agradecida ao bom Deus por ter garantidos os trocados de suas freguesas, que permitiam a compra do feijão para colocar na mesa uma vez ao dia.
Entre tantas outras histórias, que fazem parte da vida de milhões de famílias brasileiras, esta é mais uma que reflete o descaso com que a desigualdade social é tratada por governantes e pelas elites que, em proveito próprio, sonegam da maioria o direito a uma vida digna com acesso à educação de qualidade, saúde, segurança, moradia, cultura, trabalho e lazer, necessidades básicas a serem satisfeitas por qualquer ser humano.
A fome universal é a fome de amor, cuidado, solidariedade, justiça, liberdade e respeito. Não há nada, além da falta de humanidade, que justifique a escassez de alimentos num país com uma extensão de terras agricultáveis como a que existe no Brasil.
Colly Holanda
Geógrafa, natural de Natal-RN, reside no Recife-PE. É autora de oito publicações infantojuvenis e duas nos gêneros crônica e poesia. Participa de mais de trinta antologias. É declamadora, contadora de histórias, escritora e associada a instituições literárias nacionais e internacionais.
Respostas de 19
um relato pintado com as cores do dia a dia de muitas famílias residentes na periferia das nossas cidades.Esse relato oferece elementos para reflexão sobre o sistema capitalista excludente em que vivemos, e a nossa responsabilidade em interferir politica e socialmente nas mudanças
A facilidade de que tens para desenvolver temas é contagiante. Parabéns, Colly! Sou tua fã.
Parabéns,Colly! Você retratou a triste realidade da sociedade
Minha escritora preferida, ela escreve, envolve seu público infantil e adultos e se envolve com
os personagens criados por ela, atua e escreve com muita desenvoltura.
A criança que habita nela nos transporta para o mundo mágico…sem paredões.
Quantas MARIAS existem no nosso Brasil?! Um relato que infelizmente é reflexo da nossa sociedade.
Que nunca precisemos passar por essa situação !
Parabéns a essa escritora MARAVILHOSA que consegue traduzir, em seus textos, com clareza, a realidade que atinge nossa sociedade!
Gratidão 🙏
Parabéns, ótima reflexão Sra Colly 👏👏👏👏👏👏
A forma que você retrata a realidade nas suas crônicas nos encanta e me transporta de volta para uma triste realidade vivida na minha infância!
Colly Holanda sempre muito inspirada nos seus textos, abordando a realidade de muitas famílias do nosso Brasil
Com uma característica singular, ela sempre consegue conectar o leitor a realidade narrada. Me emociona olhar para o lado e “enxergar” tantas marias… A fome de amor, de empatia se depara com a indiferença de tantos… uma realidade que está ao nosso redor e que me parte o coração. Que nós sensibilizemos com a situação é que possamos cada um fazer a sua parte, em busca da mudança dessa realidade de 20,1 milhões de pessoas vivendo numa situação de insegurança alimentar (fonte G1).
Ótimo exemplo exposto de uma boa parte da sociedade atual, texto bastante reflexivo e emocionante. Espero que um dia possamos ver o Brasil sem tantos casos parecidos com o descrito no artigo. Parabéns Colly Holannda, ótimo texto, muito bom!
Colly, sempre nos emocionando com seus textos maravilhosos. O meu sonho é um dia acordar ,e saber que a fome foi extinta em nossa sociedade, no mundo inteiro. Enquanto isso ,vou alimento minha esperança por dias melhores .
parabéns,minha querida escritora,ao relatar a realidade da vida da grande maioria das pessoas humildes! Necessitamos mais de incentivos dos governantes as necessidades do cotidiano! Abraços Zélia Joel Rodrigues
Colly, voce narra com sensibilidade e verdade a triste realidade de nossa gente, de mães multifacetadas em seu dia a dia de luta e coragem.Parabens amiga, aplaudo e vibro a cada feito seu que com maestria conta os mais animados e divertidos contos no qual embarcamos ao lê-los para nossos pequenos, mas tambem mostra duras lutas de um povo, impostas pelo sistema.Parabens!!!!
Adorei o seu texto Colly Holanda, e sou muito feliz por ter te conhecido no meio do oceano Atlântico viajando a trabalho, mas era onde sempre desejei estar. Sucesso sempre.
FOME! Sáo tantas no tempo de omissáo e falta de solidariedade!
Ler textos que falam dessa epidemia …FOME…nos faz esperançar!!
parabéns!
Certíssimo: nada justifica a fome em um país como o nosso. Solidariedade é o que falta! Parabéns, Colly.
Colly Holanda nos traz a história de Maria, história de tantas Marias que sonham, persistem e vivem em seus dias ingratos. Tantos sonhos, tantos dias em que Maria sonha em trazer para os seus, o melhor possível. Tanto esforço dessa mulher, que briga com a vida como se fosse o último dia. E Maria provavelmente canta; Maria provavelmente traz, em sua alma o bom humor, a satisfação de labutar pelos seus. Assim Maria canta e traz em seu canto e em seu olhar que brilha a esperança de ver a vida de uma outra forma…Parabéns cara Colly Holanda, por este conto, por este canto em prol de todas as Marias…
Nada é mais degradante do que a injustiça social.
Nada que traga mais desassossego, desarmonia e desesperança.
Parabéns pelo texto, Colly