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Carta de Ricardo Japiassu a Clarice Lispector

II COLETÂNEA DE MEMÓRIAS CARTA A CLARICE LISPECTOR

Recife, Sábado de Aleluia de 2021.

Tudo é Graça de Deus!

Oi Clarice, tanta saudade de você.

 

A tarde está agradável, bonito para chover. O tempo cinza e a garoa banhando a terra. Mas deixa eu te contar: Descobri que viemos do mesmo pai Abraão, aquele das Arábias, genitor dos ismaelitas, dos israelitas e de nós católicos, braço do judaísmo. Então, somos parentes, da mesma descendência e cepa. Amanhã comemoraremos a Páscoa, uma festa cristã, embebida na tradição dos judeus, quando da sua passagem da escravidão à liberdade, daquela fuga do Egito, tão bem contata na Bíblia, também nosso livro sagrado. Portanto, bons festejos para nós todos. Boa Páscoa.

Eu vou te contar: A minha amiga pernambucana, a poetisa Deborah Brennand, escreveu um livro lindo, em prosa poética, Tantas e Tantas Cartas. Deborah é senhora de um estilo muito diferente do teu. Ela é delicada, reflete sobre o amor e os estados de paixão. Enquanto, tu és impetuosa, colocas o dedo na ferida. Duas recifenses que me agradam e eu parodio Deborah nesta carta: Tantas e Tantas Saudades. A tarde invernosa, lembrou-me dos meus dias em Paris, há quase 30 anos. Muito jovem, assisti ao curso Poética da Diferença Sexual, ministrado por Hélène Cixous, no Collège de France. Já tinha lido o teu A Paixão Segundo GH. Livro que me impressionou, embora sem leitura mais adensada. Começava a te conhecer academicamente, na França. Um sonho! Foi na França que conheci Manolo, o sarraceno, o espanhol. Os bancos da Sorbonne me trouxeram alegria. Ele atravessou o Atlântico numa caravela para me ver, atracou em Pernambuco. No entanto, eu já estava afetivamente doente. O lacaniano Carlos Roberto me adoeceu de tristeza e desamor. Tantos maltratos.

Manolo foi embora antes do Carnaval. Ele chegou no dia 5 de fevereiro de 1995, data do acidente, anos antes, que acabou com a saúde do meu pai, Carlos Eduardo. Lembrança forte para mim. Estava entre dois amores. Manolo e o meu pai convalescente. Manuel Enrique tinha os olhos castanhos, escuros, a tez branca e delicadeza no trato. Sou como Deborah, de amores delicados e suaves. Quase trinta anos depois e a lembrança permanece firme. Somos assim, as afeições olhando para o tempo com insignificância, são lembranças atemporais.

Estudar-te, porém, não foi uma dádiva determinada pela velha Europa. No primeiro semestre do mesmo ano, já aluno da Universidade de São Paulo, debrucei-me sobre os teus contos, sobretudo aqueles de memória. A professora Nádia Battella Gotlib entrou na sala, com muito charme. Magrinha, os cabelos muito negros – quase azuis – arriavam sobre os ombros. Lembro bem. Trajava minissaia e era só charme, linda. Depois da aula, fomos almoçar no restaurante dos professores, o Clubinho. Estava pesquisando o diário da Condessa de Barral – grande paixão de Dom Pedro II – o que me salvaria a vida de tanta tristeza e decepção. Meu coração, meu espírito e a minha mente se encontravam em frangalhos. O ardor pela vida que a Condessa de Barral manifestava nos seus manuscritos, faziam-me reviver. Não foi a toa que escolhi os teus contos de memória, Clarice, aqueles do livro Felicidade Clandestina: Resto de Carnaval e Cem Anos de Perdão; e de A Descoberta do Mundo, o conto Banho de Mar, como temas do meu trabalho de conclusão do semestre. Ah! Deixa eu te contar: nunca revelei a ninguém. Aqui em Recife, eu e Manolo subimos ao campanário da igreja de São Pedro dos Clérigos. Vimos, do alto, a cidade afogada por rios. Que saudades.

Entretanto, as peripécias, me unindo a ti e a Nádia, continuavam. Já radicado na friorenta Poços de Caldas, iniciei um curso sobre as tuas crônicas, no campus da Unesp, em Araraquara. Dormia na casa de Nádia, em Ribeirão Preto e, no dia seguinte, íamos à aula e, à tardinha, regressava a Poços de Caldas. Uma delícia o nosso almoço na fazendinha do grupo Lupo. Sou guloso e não nego. O doce de amoras, mesclado ao doce de leite, uma beleza. Assim estreitei sobremaneira os laços com Nádia e o esposo dela, o Márcio. E falávamos tanto da Condessa, do frescor da juventude, em plena madureza. Porém, sobre Manolo eu nada contei à minha professora. Pelo contrário, falei somente de Zeca. Não disse a ela ainda que ele faleceu jovem, aos 64 anos, depois de ser prefeito da Pedra – a cidade onde nasci, tu sabes – por três vezes. Senti, mas não me envolvi. A paixão já tinha passado. Nós namoramos, eu era ainda bem jovem. No entanto, ele me marcou muito, Clarice.

Quase tudo passa. Porque hoje estou solitário? Não sei. Tantas paixões e me encontro sozinho. Não há outra palavra: Destino. Tenho muitos amigos da minha idade, outros bem mais velhos, como a jornalista Ariadne Quintella. Nos encontramos aos domingos, saímos para almoçar; um concerto de vez em quando; um bom balé e tanta, tanta sinceridade, olhos nos olhos. Um faz bem ao outro. Assim a vida. Deus jamais permite que fiquemos abandonados. Honrei a existência do meu pai. Cuidei dele, da alimentação à higiene; do banho ao repouso da noite. O bom Deus me cumulou muito, cobriu de bênçãos. Tanto que eu te escrevo para dar a notícia que o psicanalista Juliano Victor Luna, está me fazendo superar a era Carlos Roberto. Maravilha a existência. Com menos tristeza no coração, reparo no esplendor de cada dia, cada momento de Graça. Como me ensinou uma freira Damas, Irmã Maria do Carmo Ferreira: Tudo é Graça de Deus. Eu vivo assim agora.

Tantas e tantas coisas a te dizer. Hoje realizo com o essencial. Voltei a estudar. Estou cursando Licenciatura em Letras – Francês, na UFPE. Quero fazer concurso para lecionar. Os meus anos de jornalismo no Diário de Pernambuco foram violentos, pesados, agoniados, de nível baixo, mesmo enlouquecedor. Uma gente agressiva, recalcada. Carlos Roberto teceu muita intriga. Este prejudicou o meu transcurso. Nada, no entanto, de bom ou de ruim que fazemos passa desapercebido de Deus, nesta existência. As pedras, um dia, se juntam. E, naturalmente, creio no acerto de contas.

De vez em quando escrevo, nunca tão intenso quando a densidade de tuas palavras, a profundidade do teu dizer. De Restou de Carnaval, ficou a sutileza de um beijo roubado; de Banho de Mar, o quanto a natureza nos regenera e, por fim, de Cem Anos de Perdão, de que ninguém rouba ninguém. Tudo é de cada um. Pois aqui fico, na terra da tua tia Mina, Clarice, esperando me debruçar sobre outras leituras tuas. Um beijo sempre grande.

Estrada da capelinha dos Aflitos, outono,

Ricardo Japiassu Simões.

 

Acesse o Edital de participação da Coletânea Cartas a Clarice Lispector

https://culturanordestina.com.br/ii-coletanea-de-memorias-cartas-a-clarice-lispector/

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