II COLETÂNEA DE MEMÓRIAS CARTAS A CLARICE LISPECTOR
Recife, 10 de setembro de 2021
Prezada Clarice,
Reservada em vida, penso que vai agora se surpreender com tantas cartas na Caixa Postal. Quando ler a primeira, vai entender que esse foi o jeito encontrado pela Cultura Nordestina, para dizer que você continua presente entre nós, definitivamente.
A lembrança do nosso primeiro encontro é de quando comprei ¨Laços de Família¨, na Livro 7, um espaço de muita importância na vida cultural da cidade. Não é da sua época a livraria, mas quando eu disser o nome da rua – Sete de Setembro – vai se localizar, pois faz parte do mesmo Bairro da Boa Vista onde você viveu, e eu também. A Sinagoga que frequentou ficava na Rua Martins Júnior, uma das transversais, só que no trecho mais próximo à sua casa, na Praça Maciel Pinheiro, enquanto a Livro 7 estava mais perto da Faculdade de Direito e do Parque 13 de Maio.
Atraída pelo título, pois os meus laços são muito fortes, li com crescente interesse cada um dos treze contos. Ao longo desse tempo os reli, e agora, antes de lhe escrever, leio outra vez os preferidos.
Uma das primeiras identificações, foi logo no trecho inicial do conto que dá nome ao livro. Sou de origem interiorana e nosso meio regular de transporte, por longos anos, era exclusivamente o trem. Igual à mãe do texto, a minha também contava os volumes ao embarcar e os recontava a cada parada, pelo risco real de extravio, nas descidas e subidas dos passageiros.
¨Uma galinha¨, é o retrato do domingo na maioria das casas daquela época. O almoço era cevado no quintal por algumas semanas, assim engordava e ficava limpo. Comprar na feira e matar logo não era aconselhável, podia inclusive estar doente. Várias vezes bati o sangue de uma delas no prato contendo vinagre, para fazer o molho pardo, que eu adoro!
Minha avó dizia que se a gente tivesse pena, a vítima demorava a morrer. E não é que um dia aconteceu? A galinha soltou-se e saiu correndo pela cozinha, o pescoço sangrando, um alvoroço. Acabou na panela, o coraçãozinho com dois pequenos cortes transversais, uma simpatia para adivinhar o sexo de um bebê. Ficasse bem fechado após o cozimento, seria um menino; com as bordas entreabertas, uma menina.
Até a chegada da ultrassonografia, a galinha, além de ingrediente principal dos pirões do resguardo, tinha a responsabilidade de definir a cor do enxoval. Quando o prognóstico se confirmava, perfeito. Quando falhava, a sorte dela era estar morta e não ser filiada a nenhum conselho profissional. À parteira, contra os princípios de então, só restava a alternativa de vestir de rosa os meninos, e de azul, as meninas.
Outro conto do livro não me saiu da cabeça até hoje. As impressões sobre as reuniões familiares nunca mais foram as mesmas, a partir do ¨Feliz aniversário¨ de Dona Anita. Aos oitenta e nove anos e em dia de festa, teve o nome mencionado apenas pela vizinha. As noras de Olaria e Ipanema, ¨mulherezinhas de pernas finas, com colares e brincos falsificados¨, como a tratavam? Seria o desprezo entre as três, motivo para não dizer aos leitores os seus nomes?
A indiferença dos próprios filhos se refletia nos cumprimentos distantes e no beijo cauteloso na pele ¨infamiliar¨. Os sentimentos de estranheza e hostilidade de uns para com os outros, resultado das ofensas e desavenças passadas, se traduzia no espírito do (des)encontro – olhares impassíveis, corações revoltados e inquietos, angústia muda. Durante o ano inteiro, a vida da velha mãe era uma vaga etapa na da família. Nova visita só no próximo aniversário, diante do bolo aceso. ¨Ano que vem nos veremos, mamãe! ¨
A bem da verdade, a aniversariante desprezava toda a descendência – ¨que o diabo vos carregue, corja de maricas, cornos e vagabundas¨; inclusive os próprios filhos, não passavam de ¨carne do seu joelho¨. Que motivo a faria considerar, entre tantos netos e bisnetos, justamente Rodrigo, filho de Cordélia, ¨carne do coração¨?
Cordélia, a nora mais nova, de olhar sempre ausente e sorriso estonteado. Que segredo carregaria? Por acaso acreditava sobre ¨acontecer uma coisa que só acontece quando a gente acredita¨? A velha grande, magra, imponente e morena, acalentaria sonhos na aparência oca? Em algum ponto sogra e nora convergiam. Havia entre elas um cúmplice entendimento sobre a efemeridade da vida, mesmo sendo a verdade falada de relance, em linguagem compreendida apenas pelas duas. Quantas suspeitas você deixa nas entrelinhas!
Toda a conversa até agora foi apenas sobre o ¨Laços de Família¨. Também, aqui pra nós, tem algo mais poderoso? Sejam nós ou laços o que nos une, é disso que somos feitos, para o bem e para o mal.
Fica óbvio que neste espaço não cabem considerações sobre outros livros, marcas que nos acompanham nas leituras e escritas, na vida. Comprei agora no seu centenário, ¨Todas as Crônicas¨, uma festa para quem, feito eu, é cronista aprendiz. Outra publicação muito boa é ¨Clarice na cabeceira¨, com trechos de nove dos seus romances, um convite à leitura completa de sua obra.
¨Correio para Mulheres¨, mais uma edição comemorativa, reuniu os textos publicados em ¨Correio Feminino¨ e ¨Só para mulheres¨. O livro é lindo, traz fita em cetim para marcar as páginas e muito vermelho na capa. Aproximou mais você, essa é minha impressão. Ler o trabalho jornalístico sobre assuntos triviais, mesmo sob o disfarce de pseudônimos, é um imã que atrai o leitor comum, e fio que nos conduz pelos caminhos da sua genial criação literária. Gosto de pensar que você escreveu também para ser lida. Lida por todos que se interessam pela reflexão.
Preciso conversar muito, mas fico por aqui. Ah, ia esquecendo de contar que a minha sobrinha se chama Clarice – nome delicado mas de sonoridade expressiva e forte. Sua xará lhe conhece faz tempo, e conserva na estante dos livros da infância ¨A vida íntima de Laura¨, ¨A mulher que matou os peixes¨, ¨O mistério do coelho pensante¨ e ¨Quase de verdade¨. Sobre o último, nos divertíamos com Ulisses, por ter o mesmo nome de um tio muito querido. E pela interação dele, contando uma ¨história bem latida¨. Você criou personagens bichos incríveis!
Nesse momento, prefiro não lhe dar notícias do Brasil. A esperança é que no próximo 2022 recuperemos a dignidade de cidadãos.
Agradeço pelo legado e aproveito para reafirmar que a curiosidade pelos seus escritos não se esgota. Cada vez que a gente lê, surge um feitiço a nos desafiar, um ponto a refletir.
Recomendações à comunidade judaica, por quem tenho especial carinho.
Fique bem e em paz.
Abraço,
Fatima Brasileiro
Acesse o Edital de participação da Coletânea Cartas a Clarice Lispector
https://culturanordestina.com.br/ii-coletanea-de-memorias-cartas-a-clarice-lispector/
Maria de Fatima Brasileiro Lyra, pernambucana, é farmacêutica e escreve crônicas para registrar o que leva no coração. É autora do livro Memórias Afetivas: Marias. A avó contou. A neta escreve e fez parte da Oficina Literária Raimundo Carrero. Nas publicações da Cultura Nordestina teve participação em Cartas a Monteiro Lobato e Festa junina especial. Sob a orientação de Paulo Caldas e Flávia Suassuna participou de várias coletâneas.
Respostas de 49
Prima , quanto talento e suavidade .
Sua escrita tem ritmo , harmonia e compasso. Tipo uma sinfonia que para mim , tanto quanto a escrita, são inatingíveis.
Parabéns, siga este caminho, adoro ler suas crônicas, até porque falam também de coisas que vivi . Me fazem voltar a infância.
Agradecida por este feliz retorno. Beijo carinhoso
Parabéns Fátima Brasileiro ! Encantadora a sua carta , a qual reviveu lembranças que são minhas também , visitei o meu passado , tempo de criança com alguns episódios citados por você.
Carta linda, Fatima… Essas coisas ajudam a gente a ir seguindo, apesar das dificuldades… Beijo grande.
Parabéns! Não me canso de parabeniza-la pelo seu talento com as palavras! Você escreve contando as coisas com uma fluidez delicada e ao mesmo tempo real. Tudo é tão natural, parece que ouço suas palavras. Isso torna a leitura leve e prazerosa. Isso também faz criar sentimentos de empatia nos leitores… A gente que também conhece os lugares se identifica, e quando não conhece, fica querendo conhecer. Obrigada por dividir seu talento!
Belíssima carta!
Leitura leve e gostosa.
Parabéns 👏! Uma leitura leve e bastante harmoniosa!
Franney, concordo com você. O que Fátima Brasileiro escreve é sempre assim.
Realidade, reflexões e esperança, tudo muito bem colocado. Exatamente nessa ordem. Belíssimo trabalho, parabéns!
Parabéns Fatima, adorei.
Excelente, Fátima!! Parabéns! “Viajei” na leitura…
Parabéns Fátima! Você escreve com o coração! Quanta boniteza há nesta carta.
Fátima querida,
Clarice, certamente, está lisonjeada. Eu, sendo ela, me agarraria a essa carta e a leria vezes sem conta, somente para sentir o tanto de carinho que ela traz.
Gosto dos seus escritos, Fátima. Suas palavras são precisas, alcançam nosso âmago, dizem o que a gente sente.
Lobato me disse que dorme com aquela sua carta embaixo do travesseiro. O que será que Clarice vai me sussurrar?
Eu conto depois.
Fátima , parabéns. Uma bela carta que Clarice gostará de responder. Tudo tão vivo.
Um abraço
Adorei Fátima, maravilhosa a carta e autora.👏🏻👏🏻👏🏻👏🏻👏🏻👏🏻👏🏻😘
Fátima escreve bem sempre com a marca da simplicidade. Seja falando de Monteiro Lobato, de Clarice, do carnaval ou de suas memórias afetivas.
Querida Fátima, um prazer imenso conhecê-la por aqui. Com certeza, Clarice ficou muito feliz em ler a sua carta recheada de amorosidade. Parabéns e sucesso!
Com certeza, Zilma!
Clarice já agradeceu à Fátima pela carta tão carinhosa.
Zilma, tenho uns mimos para você. Escritos de F. Lyra e F. Viganó. Aguarde!
Fátima,
Gostei de sua carta a Clarisse como gosto do jeito encantador que vc escreve.
Parabéns Fátima, uma beleza de carta .
Fatima Brasileiro escreve como se as Letras fossem manuscritos produzidos pela alma. Sabe como poucos cativar o leitor e leitoras. Passeia pelas veredas das frases bem colocadas dentro as frases que nos quer ler cada mais.
Parabéns Fátima! Belíssima carta, você sempre dando show em seus relatos.
Fátima, que carta mais linda!
Doce, leve e divertida como você. Me deu vontade de comprar o livro ¨Laços de família¨.
Parabéns pelo seu talento e competência.
Maravilha, Fátima! Sempre muito talentosa!
Fátima Brasileiro, minha amiga, eterna baliza da Escola Normal Estadual de Afogados da Ingazeira, como é bom ainda termos liberdade de expressar sentimentos. Não me causa surpresa a tua habilidade com a escrita, e certamente Clarisse Lispector apreciaria/apreciará tua carta.
Parabéns!
Carta belíssima Fátima. Tenho acompanhado suas produções. São leituras maravilhosas
Excelente e generoso texto escrito por Fátima.
É potente ver uma mulher inteligente escrever sobre outra. Parabéns Fátima, pela sua sensibilidade em captar todas as dobras presentes nas escrituras de Clarisse.
Prima querida , fico muito orgulhosa de ter vc na família, sempre com suas belas palavras e coração 💋Ceiça
Fátima,
A escrita, um desejo antigo que está em curso, é também uma forma de refletir e entender a vida e não se faz sem sensibilidade, implicação e coragem. Vá em frente! As Marias e Clarices gostarão de ler essas cartas e encontrar o afeto que lhe é tão peculiar!
Beijos.
Muito bom, como sempre, Fátima! Parabéns!
Carta linda e emocionante! Leitura envolvente que nos traz grandes recordações. Parabéns!
Foi com prazer fazer a leitura da Carta a Clarice de Fátima, pois sentimos a alegria de resgatar a nossa história. Nós, aqui no Recife pudemos nos orgulhar de todos esses artistas, a exemplo de Fátima Brasileiro, que nos possibilita esse olhar pelo retrovisor e impulsionar nossa altivez. Parabéns Fátima! Clarice vive!
Fátima, querida, você sempre talentosa e demonstrando a habilidade de produzir uma escrita que nos cativa e não nos permite abandonar o texto. Além disso, você sempre nos traz algo de afetivo e de instigante, de texto saído do coração. Parabéns!! Um abraço!
Titia, adorei a carta, muito bem escrita e ainda fala em mim. Lembro dos contos infantis que você me contava. Beijos!
Fatima Brasileiro, apesar de não conhecer a literatura de Clarice Lispector, seu texto nos dá a sensação de que diz tudo sobre ela. De uma espontaneidade enorme, parece que a gente vai vendo o que você escreve. Parabéns. Continue nessa busca!
Parabéns amiga !Cada um com sua particularidade,porém perfeitos.Bjs
Fátima … obrigada por compartilhar seu talento e sua sensibilidade conosco … ❤️
Texto leve, que traz recordações. Parabéns Fátima.
Parabéns Fátima! Texto irretocável e de uma extraordinária beleza!
Parabéns Fátima! Texto irretocável e de uma extraordinária beleza!
Parabéns Fátima, texto leve e fluido.
Parabéns Fátima, por ser sensível, simples, amável, delicada e talentosa na hora de escrever seus textos. Que carta maravilhosa…
Mais uma vez parabéns.
Parabéns, querida Fátima Brasileiro, por nos remeter ao tempo que as missivas expressavam as nossas mensagens aos parentes, amigos e aos amores.
Viajei muitas léguas… reencontrei pessoas e lugares…
Você é uma escritora nata!
Essa carta a Clarice é, de fato, uma viagem no tempo.
IMPECÁVEL! Emoção pura. Fluidez, texto suave, tudo da Alma, da Admiração, do Respeito, do Amor… Talento que quando foi exposto só agrada!
Excelente leitura.
Texto muito bem escrito que nos convida a reviver a obra da grande escritora, Clarice Lispector.
Parabéns, Fátima Brasileiro.
Já espero as próximas cartas.
Ler o que Fátima Brasileiro escreve é um deleite para a alma…
Boa mestra, Clarice Lispector, deu asas a Fátima, permitindo que ela a amasse e fosse sua discípula!
Me sinto parte dessa história de amor, pois viajei em cada detalhe trazido aqui, referindo as obras de tão relevante escritora!
Sutileza, essa é a palavra que retrata os escritos de minha querida amiga!
Parabéns, como é bom ler textos como esse que nos remete a uma viajem no tempo e de imaginação como se estivéssemos presentes . Aliviando as tormentas do dia a dia, nos contagiando e nos fazendo vivenciar algo que vai além dos nosso pensamentos. Sem dúvidas Clarisse está honrada em receber esta carta. Deus te abençoe 😘😘😘
Parabéns Fátima!!!!
Consegues transcrever com notoriedade. Reviver os momentos marcantes, é ser feliz duas vezes. E, fazes incorporando à simplicidade. Maravilha…