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Bento e Chico: tão imperfeitos quanto nós, por Salete Rêgo Barros

O dinamismo das relações humanas permite que a história oficial contada, até então, seja reescrita e inserida num contexto mais amplo. Não se pode falar em religião sem que se fale na Igreja Católica Romana, instituição político-religiosa que chega ao Brasil com a esquadra comandada por Pedro Álvares Cabral, que, inusitadamente, não possuía experiência como navegador. No entanto, era cavaleiro da Ordem de Cristo – companhia religiosa-militar autônoma do Estado e herdeira da misteriosa Ordem dos Templários, que tinha autorização papal para ocupar – tal como nas cruzadas – os territórios tomados dos infiéis (no caso brasileiro, os indígenas). O capitão da ousada expedição composta por 13 navios e 1500 homens tinha duas missões confiadas por D. Manoel I: criar uma feitoria na Índia e, no caminho, tomar posse de uma terra já conhecida, o Brasil, onde a Igreja se estabeleceria como prática religiosa mantendo-se a detentora dos bens materiais que dariam continuidade à obra de Deus.

A colonização mantém em regime de escravidão os mais de três milhões de nativos que antes mesmo do descobrimento já ocupavam a Terra Brasilis, marcada em mapas da antiguidade como “terrae incognitae – área a ser explorada” –, e coíbe suas práticas religiosas, assim como as dos judeus-portugueses, que vinham em busca de oportunidades, as dos africanos, trazidos para cá nos porões infectos dos navios, para terem a sua força de trabalho usurpada em prol do enriquecimento da coroa portuguesa e da Igreja Católica, com promessas de serem merecedores de um lugar ao lado de Deus no paraíso.

A conversão dos hereges à fé católica e a perseguição às ideias e manifestações que ameaçassem a vigência dos inquebráveis dogmas católicos eram a tônica da colonização.

O Santo Ofício, tribunal eclesiástico instituído pela Igreja Católica durante a Idade Média, com o propósito de investigar e julgar sumariamente pretensos hereges e feiticeiros, acusados de crimes contra a fé católica, chega ao Brasil para castigar os que se aventuravam a manter suas tradições culturais. Cabia às ordens religiosas a catequese e expansão do cristianismo ameaçado pelo luteranismo, que vinha ganhando força no continente europeu. Ainda hoje, boa parte da elite brasileira conservadora vê com intolerância os adeptos de credos diferentes do oficial.

Apesar de tudo, há que se reconhecer o legado deixado pelas ordens religiosas na educação do povo brasileiro, assim como o trabalho social desenvolvido pela Igreja Católica destacando-se, entre outros padres da atualidade, o arcebispo emérito de Olinda e Recife, Dom Hélder Câmara (1909 – 1999) e o padre Airton Freire de Lima (1955), da Fundação Terra, em Arcoverde-PE, pela coerência de suas ações com as práticas cristãs.

O maior cargo de chefia do Vaticano e da Igreja Católica já foi ocupado por diversos sacerdotes protegidos pela aura de infalibilidade, santidade e uma ostentação sacramentada visivelmente incompatível com os preceitos cristãos herdados dos apóstolos de Cristo.

Para surpresa geral, em fevereiro de 2013, o Bispo de Roma renuncia ao cargo e é aclamado, em seguida, como novo chefe da Igreja, o cardeal argentino Jorge Mario Bergoglio, o Papa Francisco, primeiro jesuíta e primeiro latino-americano eleito para o cargo, e agora protagonista do longa-metragem baseado em fatos reais, “Dois Papas”, sendo Bento XVI interpretado por Anthony Hopkins e Francisco por Jonathan Pryce. A direção é do brasileiro Fernando Meirelles e o roteiro de  Anthony McCarten.

Além de futebol e tango, o filme aborda temas como nazismo, tortura e ditadura; fala de tolerância e perdão; deixa à mostra os bastidores do Vaticano e da Igreja Católica, seu acervo histórico e patrimonial, além dos escândalos de corrupção e pedofilia que, provavelmente, motivaram a renúncia, acrescidos à idade avançada e saúde debilitada de Bento XVI. Tudo em benefício da mudança radical necessária para que a instituição mantivesse o poder e a admiração da legião de fieis espalhados pelo mundo, apesar do desconforto causado pelos escândalos vazados à imprensa.

O cinema tira as máscaras da santidade e infalibilidade papal. Bento e Francisco são dois pecadores confessos, assim como qualquer um de nós pode ser, apenas, com uma diferença: nós nunca dissemos que não somos – segundo a própria Igreja, ao nascermos, já trazemos na alma o pecado original.

Que 2020 seja o ano do reconhecimento dos erros, do perdão e do início da transformação de que nos fala a carta encíclica Laudato si, do Papa Francisco, sobre o cuidado da casa comum. Trata-se de uma crítica ao consumismo e ao desenvolvimento irresponsável com um apelo à mudança e à unificação global das ações para combater a degradação ambiental e as alterações climáticas.

Apesar de contrariar grandes interesses econômicos, o cuidado com a nossa casa é fundamental para continuarmos morando nela.

Feliz 2020!!!

 

2 respostas

  1. Parabéns Salete, pelo excelente texto!
    O filme é muito bom! Mostra o quanto o perdão é importante e também o lado humano do poder!
    A realidade de uma ditadura nua e crua, e o quanto é maléfica para a sociedade! Belo filme, atual e impactante!
    Beijos

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