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A fuga, por Ivanilde Morais de Gusmão

Dia 12 de junho, de Santo Antônio, o santo casamenteiro. As moças da vila faziam adivinhações e ofereciam prendas para conseguir um marido.

Para comprar fogos, eu e meu irmão contávamos as moedas recebidas como pagamento por tarefas que fazíamos para a vizinhança. Ao entardecer, a fogueira era acesa e começavam as brincadeiras. Certa vez, ele armou uma pequena bomba e mandou que eu acendesse. Mão, braço e um lado do rosto todo chamuscado deixaram marcas que o tempo se encarregou de apagar.

Órfãos de mãe, fomos abandonados quando meu pai raptou uma mulher por quem se apaixonara. Casada e mantida presa, diziam, por causa do ciúme. Foi obrigada a casar para quitar a dívida do pai, que ninguém sabia de onde tinha vindo.

Os nove irmãos passaram a viver praticamente de favores. A irmã mais velha cuidava de todos e passava a semana dando aulas aos filhos dos proprietários das terras. Um dia, ela chega com a notícia de que um dos pais dos alunos havia conseguido, com um político, um colégio agrícola para o meu irmão de 11 anos estudar, aprender uma profissão e trabalhar.

O portador vem buscá-lo na próxima semana, avisou. Vou arrumar suas coisas e trate de se comportar. Ele olhou pra mim com os olhos marejados. Uma criança difícil, quase violenta, mas éramos cúmplices e nos protegíamos um ao outro.

Instalado na boleia do caminhão, sem olhar pra trás, ele vai. Como agora viver sozinha sem proteção, se ninguém gosta de mim? O fato de eu já saber ler, escrever e fazer as quatro operações era motivo de zombaria na escola. Diziam que eu tinha parte com bruxa, e que havido sido recolhida na floresta.

Dia 19 de março, de São José. A chuva era o prenúncio de uma boa safra de milho no São João.

Acesa a fogueira, as labaredas iluminavam a noite. Lá adiante, cambaleando, maltrapilho, aproximava-se meu irmão. Assustada, gritei por minha irmã. O que é isso? Que faz aqui? Fugi. Não volto mais. Aquilo lá é o inferno!

Após desmaiar, foi levado para dentro de casa e colocado numa bacia para se banhar. Em seguida, devorou a comida que foi colocada à sua frente. Sempre de olhos baixos. Eu tentava compreender os motivos de sua volta, porque eu vivia pensando em, também, fugir. Odiava aquele lugar, aquela gente. Compreensiva eu imaginava: um dia também partirei, mas não fugindo… Não sei como, mas partirei. Assim como os pássaros, voarei!

Lá fora, o fogo crepitava e iluminava o céu cheio de estrelas. Agora que está forte, conte-me porque fugiu. Ela não pode saber, diz ele se referindo à irmã mais velha. Espantei-me, porque nunca tiveram segredos. Com o ouvido colado à porta, escutei meu irmão chorar e minha irmã insistir: Diga, diga… O que aconteceu? Entre soluços ele respondeu: fui escolhido para servir ao diretor. Sim, e daí?  Vez por outra um menino era escolhido para ficar com ele, mas voltava de lá triste e ferido. E ninguém falava nada. Um dia, o professor disse: Amanhã é sua vez de ajudar o diretor. Todos silenciaram. As poucas vezes que eu o tinha visto, sentira um frio na barriga. Sabia que era mau.

Após o jantar fui levado até uma porta grande e escura. O professor bateu de leve, três pancadas. Entre! Fui empurrado e vi algo atemorizante. Olhei em direção à janela e lembrei que ficava no alto. Por trás daquela cortina, eu via que ele espiava as crianças no pátio.

O monstro levantou de trás da mesa e se aproximou completamente nu, mostrando algo que parecia uma espada – escura e brilhante. Venha, está lambuzado de chocolate, você vai gostar! Imediatamente, lembrei quando ia pegar os coelhos para o jantar. Ao estender a mão, corri, pulei a janela e fugi! Nem morto voltarei!

A fogueira apagou e nunca mais se falou no assunto.

 

Ivanilde é advogada, professora e autora de vários títulos publicados no Brasil e exterior como ensaísta, contista e poeta. Estudiosa de Karl Marx e da Literatura. Membro de várias Academias. Sócia contribuinte e coordenadora do Núcleo de Filosofia da Rede de Associados Letras & Artes – LETRART.

https://www.culturanordestina.com.br

13 respostas

  1. Santo Antônio, neste tempo de pandemia, vai precisar de fazer um milagre para este vírus ir embora.
    As moças até têm os parceiros, mas o vírus não deixa a festança acontecer.

    1. Ivanilde, parabéns! PARABÉNS MESMO, amiga ! EXCELENTE a dramaticidade do seu conto!. A cumplicidade fraterna, a despedida sem choro do menino que de forma abrupta se torna homem, a lnocência roubada., na monstruosidade da autoridade em sua maldade sem freios, fazendo com que aconteça uma fuga suicida no desejo de se alcançar a liberdade

  2. Nossa!!!! Chocante, apavorante, tristíssimo…
    Mas acima de tudo, muito lindo!!!
    Parabéns amiga/poeta.
    Beijos

  3. Transcrição do comentário de Roselis Batistar, via whatsApp:

    Parte 1
    Ivanilde, aí vão os temas que você aborda no seu conto “A Fuga” aproveitando-se das festas juninas para denunciar injustiças sociais para contrapor de maneira inteligente e inesperada pelo leitor, uma temática rica, que incomoda, evidentemente, os que só olham para o próprio umbigo. Mas para Ivanilde isso não é suficiente. A voz do narrador está astutamente oculta, como alguem que está observando de algum cume, o que os simples mortais não vêem. Por exemplo, as jovens que querem aproveitar o santo casamenteiro daqueles dias alegres para encontrar marido. Assim como elas são cegas e surdas no seu entorno, assim seriam os anônimos que o narrador não menciona, pois não há tempo a perder. Logo logo aparece um tema que é leitmotif na literatura, não só nordestina, não só brasileira – a da criança vítima, a dos adultos egoístas, a dos pais indiferentes, a da falta crônica de amor. Na literatura inglesa Charles Dickens já advertía esse “Modus Vivendi”.

  4. Parte 2

    A riqueza temática do conto “A Fuga” de Ivanilde Morais não fica aí a tal ponto que o conto está quase “estourando”, pedindo piedade ao narrador e dizendo-lhe indiretamente que seu tamanho não comporta tanto assunto, onde numa festa alegre, a imbricacao de UMA história (estória) tão triste , essa de dois irmãos que só se tinham a si próprios, deveria estar numa novela ou num romance, mesmo que tantos outros já tiveram lugar no nordeste do Brasil, afinal sempre cabe mais um, para ver se essa classe abastada e esses governos desumanos e ladrões se lembram das crianças abandonadas. O tema do AMOR verdadeiro só aparece como tentativa entre os dois irmãos. O suposto amor das jovens casadoiras, e o do homem muito mais velho que se casa com uma mocinha “para que ela, com seu corpo pagasse a dívida de seu pai”, é outra negação do amor, lá, na veia do dinheiro que em tal mundo compra tudo, e quando compra apaga o que poderia TER SIDO, ou seja, no caso, o amor.

  5. Parte 3

    Ivanilde pensa “água mole em pedra dura tanto bate até que fura” e da outro alongamento a uma narrativa que “se queria de festa”. A pedofilia surge na história valendo-se do título: “a fuga”. Fugir de que, de quem quando já se está perdido??? E aí vem a esperteza de um narrador que finge ser Poncio Pilatos – jogando na cara do leitor, provavelmente um dos muitos hipócritas, um dos muitos Poncio Pilatos do mundo em que lutam para sobreviver nossas duas personagens (no feminino em português a palavra personagem, só para evitar o galicismo), digo, fazendo-lhes ver que a FOME não pode ser saciada com um pênis achocolatado.

    Roselis Batistar, 30.05.2020.

  6. Querida Ivanilde, belo conto/denúncia. Eivado de dor, mas belo. Porque a beleza da arte fala também de dores. Os flashes da memória vão pipocando aqui e ali, como a pipoca na panela. Este milho delicioso das festas de São João. Só que na sua escrita, tem-se a panela da bruxa das palavras, da alquimia da lembrança. A denúncia que se faz é atualíssima. O seu texto é poético e antológico.

    1. Professor Evaldo Balbino, grata pela reflexão sobre meu texto A FUGA!
      É um texto forte que aborda questões atuais.
      Que alegria saber e ver que a nossa Escrita está sendo lida, analisada e oferece oportunidade para um análise.
      Meu abraço fraterno Ivanilde.

  7. Professora Ivanilde
    História como esta que não é ficção, eu sei, é pura realidade vivida, só uma escritora de elevado nível de humanidade e humildade trás pro leitor a força de superação de qualquer obstáculo q surja na caminhada da vida.
    Uma lição de vida.. Parabéns .
    Edineia

    1. Olá professora, amiga e companheira de estudos lá do nosso querido GEMARX, é uma alegria ler seu comentário. Toda ficção tem sua raíz na realidade, cabe a nós escritores sublimar as questões.
      A problemática é muito atual. Se tem notícias de muitos casos, dei a importância da abordagem Literária como forma de denúncia.
      Com meu abraço fraterno Ivanilde

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