HISTÓRIAS DO ARCO DA VELHA – Texto apresentado durante a comemoração do Dia do Folclore, na Cultura Nordestina, em 22 de agosto de 2018
Nascida em meados do século XX, era, em relação aos medos, como as demais crianças habitantes das grandes cidades. Tinha medo do escuro, dos fantasmas e de muitos outros seres. Havia também os medos provocados pelos irmãos mais velhos… “se correr o bicho pega e se ficar o bicho come!”
Naquele tempo, a tecnologia já se fazia presente através de alguns recursos como o rádio, a televisão e o cinema, expondo culturas estrangeiras àquela criança e influenciando seu mundo imaginário, fazendo surgir, além de fantasmas, bruxas, duendes, vampiros e dragões. Um misto entre leituras de contos de fadas e o que era apresentado no cinema e na televisão.
Não desconhecia totalmente os seres que ainda povoavam a crendice popular, pois ouvia histórias contadas pelos mais velhos. O Saci Pererê foi o único que conheceu por meio dos livros de Monteiro Lobato. Mas o Saci não podia lhe meter medo, estava distante… num livro, era até engraçado! A Cuca foi bem mais tarde… saiu da TV com aquela canção: Cuidado com a Cuca que a Cuca te pega.
Além das histórias de seus familiares, havia aquelas contadas pelas moças que vinham, oriundas do interior do estado, trabalhar na sua casa. As histórias falavam da Comadre Florzinha, da Mula-sem-cabeça, do Fogo-fátuo, do Caipora. Eram histórias que davam medo, mas um medinho tranquilo, porque a menina morava na cidade e não ia se deparar com nenhum daqueles personagens que habitam as matas… sobre a Iara, o Boitatá, que aprendeu na escola, eles apareciam tão longe… no Amazonas…como iam lhe causar medo?
Quando se tornou uma mocinha e foi morar na praia, ouviu falar de Iemanjá. Também sentiu medo, mas um medo sereno, olhando para o mar com respeito, a uma certa distância dos rituais, das oferendas, para que o santo não baixasse nela! No entanto, Iemanjá era uma entidade de uma religião e não uma crendice, como descobriu mais tarde… E bem mais tarde teve medo da perna cabeluda, uma perna que andava sozinha à noite e dava chute nas pessoas… até nos jornais saiu notícia! Mas isso foi bem mais tarde…
De concreto mesmo, sobre os seres que coabitavam com as crianças na cidade grande, havia o Papa-figo. Esse assustava muito e fazia com que a menina, ao brincar na rua, nunca perdesse o olho no portão de casa. A menina não se distanciava muito. Qualquer pessoa suspeita fazia com que ela desse uma carreira desembestada direto para dentro da casa. Esse foi um ótimo argumento usado pelos pais para não perder os meninos de vista… Cuidado com o Papa-figo!
O Papa-figo, lhe contaram, era um homem velho, com um saco nas costas que roubava crianças e se alimentava do fígado das pessoas… Havia várias histórias sobre aquele homem, sempre de alguma criança que se perdeu. E qualquer homem mais velho, mais humilde, que carregasse um saco, podia ser confundido com o Papa-figo! Esse era um medo que pairava sobre as cabeças das crianças, embora aquela menina nunca tenha visto nenhum…
Depois do Papa-figo, um grupo carnavalesco sazonal batia nas portas das casas fazendo, como por encanto, desaparecerem todas as crianças do entorno. Elas se escondiam no interior de suas casas com o coração aos pulos, mãos geladas e muitas vezes chorando de medo dos caboclinhos. A menina chamava aquele grupo de CABOCOLINHO. Uma vez por ano eles vinham… um grupo vestido de índios, com arcos e flechas, batiam nas portas das casas e apresentavam sua dança a troco de gorjetas que os adultos davam. Esse sim era um medo bem concreto. Um medo danado de ser levada por aquela tribo ou mesmo de ser atacada por eles… coisas que povoavam a imaginação daquela criança assustada.
Mas de todos os seres que vivam na cidade, o Bicho-papão era o que mais aterrorizava a mente daquela menina. Um bicho… que não podia identificar direito… devia ser algo muito feio…devia ser muito grande… marrom? Preto? Do tamanho de um cavalo? Ou de um elefante? Tinha mãos grandes, barriga enorme e um bocão??? Não sabia muito sobre ele… apenas imaginava… e quanto mais imaginava, mais temia…o que sabia? Que pegava as crianças e papava!!!! Os mais velhos diziam: Menina, cuidado com o Bicho-papão!
Tu algum dia viste um desse? Eu não! Mas que medo, heim? Venho daquele tempo quando o medo era infiltrado nas criancinhas, logo cedo, por meio de uma simples canção de ninar:
Bicho-papão
De cima do telhado
Deixa o meu menino (ou nome da criança)
Dormir sossegado.
Vai-te papão
Vai-te embora do telhado
Deixa o meu menino
Dormir sossegado.
O medo era assim bem folclórico na minha infância. Hoje em dia, as crianças só conhecem esses seres na escola e uma vez no ano fazem algumas pesquisas sobre nosso folclore. Seus medos são outros, mais estrangeiros e tecnológicos, algo que já prenunciava na minha infância… e eu… que me tornei adulta numa cidade imensa e marginalizada… queria tanto que, hoje em dia, meu maior medo fosse de Bicho-papão!