II Coletânea de memórias Cartas a Clarice Lispector
Carta aberta àquelas que comemorarão o centenário de Clarice,
No Centenário de Clarice Lispector, a curiosidade das comemorações ainda não atingiu seu ápice, mas todos os prognósticos são de que vai haver muito reboliço – seu nome marcou épocas e continua cintilando. Da mesma maneira, sua criatividade inatingível, que exige uma leitura atenta e prolongada, consagrou-lhe como uma das maiores escritoras, não apenas do século XX, mas de todos os tempos.
Seus romances A Hora da Estrela e Perto do Coração Selvagem, tendo sido este o primeiro romance escrito por ela, e aquele um dos últimos de sua carreira, revelam uma Clarice de corpo inteiro, com um detalhe: seus personagens em nada se parecem com ela, mas possuem uma subjetividade própria e complexa. A nordestina Macabéa, por exemplo, é uma mulher miserável, sem consciência do existir, enquanto Clarice, capaz de desenvolver essas personagens cheias, ao mesmo tempo, de vida e de morte, é atribuída e se atribui a diversas origens: nasce na Ucrânia, muda-se para Maceió, no Estado de Alagoas, mas entende-se como Pernambucana, sua terra de coração.
Observa-se, em Clarice, o dom da escrita desde suas primeiras palavras, a profundidade do jogo de letras armado por ela pode ser lido, até mesmo, nas dedicatórias de seus livros, sem esquecer que sua preocupação remonta não ao agrado do público, mas escreve aquilo que sente e acha que deve escrever. Como a própria Clarice aponta, em uma de suas entrevistas, ela acredita que as pontuações do texto são a respiração do escritor, e por isso nunca concordou que os editores alterassem o ritmo das passagens de suas obras. Ela respeita, acima de tudo, seu texto escrito, junto às imagens que cria, que, mesmo não servindo como espelhos de si mesma, refletem, com peculiar perspicácia, nuances e versões de uma Clarice que escreve tudo o que lhe ocorre. Suas epifanias permitem que ela se lance, constantemente, a um desconhecido que habita nela mesma.
Por vezes, o que nos parece é que Clarice escrevia porque precisava, mas não porque gostasse ou o quisesse de fato. Conforme a própria escritora aponta: “O que me atrapalha a vida é escrever”, e então começamos a pensar: como alguém que não gosta de escrever, cativa a tantos com aquilo que imprime nas páginas em branco de seus romances, contos e crônicas? Em Clarice, parece existir sempre um algo a mais, escondido por trás da melancolia aparente em seus escritos e em seus olhos cansados e cheios de um amargor pujante.
Como uma forma de testemunho, ela lança a seguinte citação em A Hora da Estrela, deixando clara essa angústia que sente – é como se Clarice não gostasse de escrever, apesar de apreciar o que já tem escrito:
Escrevo por não ter nada a fazer no mundo: sobrei e não há lugar para mim na terra dos homens. Escrevo porque sou um desesperado e estou cansado, não suporto mais a rotina de me ser e se não fosse a sempre novidade que é escrever, eu me morreria simbolicamente todos os dias.
(LISPECTOR, A Hora da Estrela, 1998, p. 21).
Com toda minha estima e admiração,
Ariadne Quintella
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