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Lembranças de uma vida enterrada para nascer, por Djanira Silva

DIVULGAÇÃO SEMANAL DE ASSOCIADOS LETRART

Há uma parte de mim no meio destas flores. Algumas lágrimas nas águas deste rio. Gotas de sangue no vinho desta taça. Há uma parte de mim nas réstias deste sol, na brancura da lua na frieza das madrugadas. O que restou de mim aos poucos se dilui nos passos de um tempo desesperado que corre a minha frente anunciando a efêmera passagem.
Caminho assim como quem perdeu o rumo, esqueceu as estradas, não sabe onde começam nem onde terminam as estações das flores, das chuvas, dos ventos, do trem. Só consigo lembrar os sonhos cozidos com linhas de vento nas pálpebras caídas sobre lágrimas mortas. De nada sei. Há muito esqueci. O quê? Sei lá…
Escondo-me nas sombras que inventei para fingir uma felicidade que me inspira desconfiança. Caminho pela vida como um autômato. Abro portas, passo para o outro lado sem me aperceber do que vou deixando para trás. Sem passado. Sem futuro.
Sempre estive à espera. Ela está no tempo no ar, nas paredes, dentro de mim. Ouvi histórias e coisas longas sobre momentos que demoram a passar, horas que se arrastam, monotonia, cansaço de não fazer nada, nada queixas do esperançoso.
A espera é contrato bilateral com o tempo, com o que está para ser. Horas dormentes esquecidas de passar, horas terminais que escorregam no trampolim do enfado e da melancolia e que perseguem os que pensam andar na frente. Antes do fim, a angústia de saber que a espera se confunde com a chegada. Caminhos que desenham numa mesma encruzilhada lírios e hortênsias, cravos e verbenas, cruzes plantadas à beira da estrada.
Acontecem todos os dias, hora após hora, transformações que transcendem os começos e se encaminham para os abismos. Fechos, desfechos, recomeços.
Acordo como acordam as flores e as auroras a cada manhã. Quando a noite adormece nas almas despetaladas a dor arruma a bagagem para a ronda de todos os dias.
Alvoroço de perfumes e sons por entre imagens que se esfumaçam fazendo ressurgir as lembranças de uma vida enterrada para nascer.

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