POSTAGEM SEMANAL DE ASSOCIADOS
Escrevo em voz baixa, como se sussurrasse minhas angústias culturais. O momento é de dúvidas e incertezas. Preciso, todavia, falar. Nasci no Recife, nutro pela cidade um amor maternal, vejo as águas do Capibaribe e Beberibe embelezando a paisagem, pontes me fascinam, o ciciar das cigarras me acalanta, o seu jeito tímido e recatado de se mostrar me deslumbra… Mas não posso esquecer o esplêndido patrimônio: o barroco das igrejas, os heráldicos monumentos, a altivez dos casarões. E o abandono cruel em que vivem me aniquila. Então repito tal qual Unamuno: “Recife me duele”. Como entender o desprezo pela nossa arquitetura vernacular?
O que seria da França distante da cultura material? Como amar a Inglaterra sem a dignidade de sua aparência? Como venerar Roma ao largo da riqueza do Renascimento? Se a Europa se ergue sobre o mastro de uma história cultuada, por que ignoramos a nossa biografia em prol de uma modernidade imperativa. Não se pode entender o presente sem retornar ao passado. Há de se construir um equilíbrio que revigore o sentimento de pertença. O homem isolado, ausente das origens, equivale a um expatriado. Não adianta ludibriar as emoções, elas voltam à tona e exigem o mínimo de respeito ao que se chama tradição. Chesterton já dizia que “tradição não quer dizer que os vivos estejam mortos, mas que os mortos estão vivos”.
Pernambuco tem uma história a contar: Revoluções Libertárias, 1817, 1824, 1848, irredentismo a prevalecer, espírito de luta a acirrá-lo na vereda da esperança. Existe uma narrativa a ser zelada, o povo precisa reverenciar o que não conhece. Não me conformo que o poder público ignore as ruínas do patrimônio da cidade. Em nome de quê? Há um lapso que fere a alma, sangrando-a. E a cidade vai decaindo como pássaro ferido em pleno voo de liberdade. “Recife me duele”.
Berço da Civilização do Açúcar, Pernambuco, a notável capitania do século XVI, liderada por Duarte Coelho, atingiu o clímax nos seus primórdios. A arquitetura dos engenhos com suas casas-grandes, capela e moita exerceu função preponderante. Não pretendo delinear uma análise sociológica. O espaço seria pequeno para reunir exegeses. Hoje, peço ao leitor paciência; dedico-me ao patrimônio vernacular. Os grandes Casarões da cidade estão se despedindo em um melancólico adeus. Antes de fenecer, gritam, bradam, pedem socorro… Do outro lado, mora um silêncio que não os escuta. Como entender a situação precária da Academia Pernambucana de Letras, instalada em prédio tombado pelo IPHAN, patrimônio histórico nacional — cuja planta original tem assinatura de engenheiro francês —, estilo neoclássico, provavelmente erguido na primeira metade do século XIX? Como presenciar seus belos azulejos portugueses se deteriorando, lustre francês sem receber tratamento adequado, piso inglês sem os devidos cuidados, todo um precioso conjunto a suplicar por um mínimo de atenção? Dói-me, dói-me muito assistir a debacle lenta e silenciosa do Solar do Barão Rodrigues Mendes, tão louvado no princípio do século XX pelas belas festas nos seus jardins, organizadas por Elvira, Eugênia e Luiza, netas do barão. Como dói!
No momento em que o Brasil vive um período eleitoral, urge invocar aos atuais e futuros dirigentes de Pernambuco um olhar esmerado para os derradeiros Casarões dos séculos XIX e XX que ainda resistem. Sim, resistem, essa é a palavra certa, apesar de esquecidos. São os últimos heróis de um legado quase devastado. Deixá-los à sorte, escorados, sem manutenção, à espera de doações dos homens de alma formada, não corresponde a atos de nobreza. Não. Não posso, não quero admitir que os governantes venham a coonestar a terrível “Crônica de uma morte anunciada” de Gabriel García Márquez. A herança material de Pernambuco não merece tamanho descaso. É hora de repetir o poeta Carlos Pena Filho: “pois é do sonho dos homens/que uma cidade se inventa”. E o sonho já se concretizou na própria história de Pernambuco. Basta conservá-lo. É tão pouco!