O filósofo alemão Immanuel Kant afirmou certa vez, num ensaio sobre a origem da cultura, que tal início se situava simbolicamente no Livro do Gênesis, no momento em que Adão e Eva foram expulsos do Paraíso e obrigados a “ganhar o pão com o suor do próprio rosto!”. Isso significava que, a partir daquele momento, a Criatura não apenas se tornava responsável pela própria sobrevivência, retirando da Natureza (que fora criada por Deus) seu sustento, mas que estava, de certa maneira, “autorizado” a modificar e transformar aquela mesma Natureza que representava nossa “casa”: a Criação divina poderia, a partir dali, ser modificada pela mão do homem, a mesma mão que se prolongará na técnica.
No mito de Prometeu (Ésquilo), esse Titã rouba o fogo do Olympo para doar aos homens, mesmo sofrendo um terrível castigo: acorrentado ao Cáucaso e tendo seu fígado comido (e se regenerando!) todos os dias por um abutre! O FOGO é, aqui, a representação da técnica com a qual os homens poderão transformar a Natureza, seja para atender às suas necessidades, seja para adaptá-la aos seus interesses.
Muito mais tarde, no século XVI, Francis Bacon (Novum Organum) afirma nessa sua obra que “precisamos torturar a Natureza até que ela revele todos os seus segredos”. A frase supõe que Deus escondeu algo no seu interior e que pode ser desvendado pela Ciência (saber) e pela Técnica (poder), transformando-a em algo a ser explorado e conhecido pela razão humana.
A história do homem é também a história de sua relação com a Natureza, de onde ele retira sua sobrevivência, e até a Modernidade supúnhamos que “dentro dela” habitavam espíritos, seres animados e vivos que davam à própria Natureza uma essência e uma alma que deveriam ser resguardadas e invocadas, para o Bem ou para o Mal. A Modernidade destrói esse “encantamento” (Max Weber), vendo a Natureza, agora, como um OBJETO a nosso serviço e interesse. A “tortura” baconiana, típica da tradição inquisitorial europeia, também serviria para que a “verdade”, contida numa Natureza imprevisível e até então indomada, fosse revelada! Foi o que Weber chamou de “desencantamento do Mundo”. Quinhentos anos depois, Theodor Adorno (Dialética do Esclarecimento) afirmou: “Se a Natureza pudesse falar, ela emitiria apenas um longo grito de dor!”.
Aliás, o próprio Marx achava que o desenvolvimento das forças produtivas (técnica) levaria à libertação do fardo do trabalho e a instauração de uma nova sociedade: herdeiro da tradição iluminista do PROGRESSO, depositou na técnica como Poder e na ciência como Saber, os avatares de nossa libertação. O que não esperávamos era que chegaríamos a um limiar perigoso, uma época delicada (o ANTROPOCENO, marcada pelo impacto do homem sobre a Natureza) em que é a própria vida humana sobre a Terra que se encontra ameaçada.
Foi com a bomba atômica e a destruição de Hiroshima a Nagazaki (1945) que entramos numa nova era, em que o Homem agora dispunha da possibilidade do extermínio completo de toda a humanidade pela Técnica! O problema que se colocou, naquele momento (ver a peça de Brecht “A Vida de Galileu”), foi o de saber se o progresso técnico com suas imprevisíveis consequências, exigia uma nova Ética, se todas as portas da cultura poderiam ser abertas, e se o “progresso” técnico caminharia, agora, com uma inusitada autonomia em que, como dizia Arendt “Não é porque pode ser feito que tem que ser feito!”. Isso significa que, a Modernidade fez migrar nossa Razão Substantiva (que avalia fins e valores de nossas ações) para uma Razão Instrumental (preocupada com os “meios” e sem se interrogar sobre os “fins”).
Em 1979, o filósofo Hans Jonas publica o seu “Princípio responsabilidade” em que propõe uma ética prospectiva: não se trata mais de definir um código de conduta, nem uma moral normativa para guiar a relação com nossos contemporâneos, nem de estabelecer “imperativos categóricos “universais. Trata-se de uma ÉTICA PARA OS PÓSTEROS, para os que ainda vão chegar no Mundo: seremos capazes de agir, no PRESENTE, de tal forma que, aqueles que vão chegar, possam herdar um MUNDO com ROSTO HUMANO? Isso, certamente, exigiria uma forma qualquer de educação que fosse além do contato com a tradição ou a preparação para a cidadania ou o trabalho, mas uma consciência socioambiental: temos o direito de queimar ou destruir a própria casa que nos abriga desde que Adão foi expulso do Paraíso, ou desde que o Homo Faber inventou seu primeiro machado-de-pedra, para usar uma simples metáfora?
A grande amiga de Jonas, Hannah Arendt, dizia que “A educação é aquele ponto em que decidimos se amamos o Mundo suficientemente para permitir sua continuidade!”. Assim, o que está em jogo em qualquer processo educacional é, não exatamente a “transmissão” de um conteúdo, ou o acesso à cultura herdada, ou a aquisição de habilidades profissionais: aqui, na educação, o que se transmite é o Mundo, entendido como o lugar onde a pluralidade de opiniões pode se manifestar, e que precisamos apresentar aos que estão chegando, sem o quê, os recém chegados podem destruí-lo, ou o próprio mundo pode destruí-los (se eles acharem que tudo “começa com eles”!).
Precisamos, de certa forma, nos desvencilhar das perspectivas Iluministas e Humanistas de uma certa modernidade que viu no Progresso a realização, num tempo futuro, de nossa mais completa Humanidade (o conjunto de nossos predicados subjetivos), e precisamos tomar seriamente em conta aquela Tese de Walter Benjamin (1892-1940), nas suas Teses sobre a Filosofia da História, em que o Anjo do Progresso vê atrás de si um monte de ruínas!
Uma educação preocupada com o meio ambiente não é uma educação conteudística em que se transmite lições a serem “cobradas” numa avaliação; nem tão pouco excursões com os alunos para conhecerem a Mata Atlântica ou exibir filmes sobre a extinção de animais em função da degradação de seu meio natural. Penso que uma educação ambiental, uma ECOPEDAGOGIA é sobretudo a aquisição de hábitos de relacionamento com o meio em que vivemos; é, no fundo, uma educação moral em que não é o Outro (pessoa humana) que respeitamos numa relação intersubjetiva. O OUTRO, aqui, é toda a vida que nos cerca, não importa onde ela esteja situada (na água, na terra, no ar): hábitos e ações que façam com que eu me sinta “responsável” não apenas pelos que ainda vão chegar, mas em que condições eles vão chegar. Essa tarefa não é só da escola: para que possa funcionar, ela precisa estar presente em todas as instituições que frequentamos e que exige um uso racional e equilibrado de energia, de água, de materiais descartáveis, de emissões tóxicas, de reciclagens…
O homem talvez seja o único animal com vocação suicidaria: aquele que não apenas mata seu semelhante, mas também mata o ambiente em que seu semelhante vive! E com o advento de novas tecnologias em que já se fala de um “pós-humano” e “transhumano”, os riscos de um suicídio coletivo são ainda maiores. Eis a preocupação e o sentido de uma nova educação ética voltada para a preservação do que ainda há de “humano” em nós e de “natural” no meio em que vivemos.
*Flávio Brayner é professor titular e emérito da UFPE, doutor e pós-doutor em Filosofia da Educação pela Sorbone (Paris V), professor titular visitante da UFRPE.