Search
Close this search box.
Search
Close this search box.

Gaia: a deusa-mãe – Apresentação, por Salete Rêgo Barros

São várias as fontes de conhecimento que tentam explicar a existência humana: mitologia, religião, ciência, arte, filosofia e o senso comum. Os diversos tipos de conhecimento apresentam características em comum para explicar o surgimento do mundo, os elementos da natureza, o comportamento humano e a complexidade de suas relações, independentemente de espaço e tempo.

Para responder aos questionamentos sobre os mistérios que rondavam a existência humana, diferentes povos construíram complexos sistemas mitológicos que guardavam semelhanças entre si. Através do uso de imagens e metáforas, os mitos eram apresentados como seres dotados de características humanas, semi-humanas e sobre-humanas, que também poderiam explicar e resolver questões do cotidiano. As virtudes e os defeitos dos deuses também eram encontrados nas narrativas mitológicas, tornando-os próximos ao ser humano, feito à sua imagem e semelhança.

A cosmovisão da Terra presente nos textos bíblicos, escritos a partir de 50 d.C., é aceita sem restrições pelas sociedades embasadas no modelo cristão – Deus criou o céu e a terra durante 6 dias (o ar, a água, as árvores, os animais); o homem (Adão) e, por último, a mulher (Eva), feita de uma costela do homem; e no sétimo dia Ele descansou. Já as narrativas dos povos antigos de diferentes credos, regiões, idiomas e épocas distintas, guardam semelhanças entre si, onde são encontradas evidências paralelas com a mais antiga civilização conhecida da região do Sul da Mesopotâmia – os sumérios (5.000 a 4.000 a.C), cuja religião era politeísta e caracterizada por deuses e deusas antropomórficos representando o poder e a força no mundo real, encontrados posteriormente na mitologia grega. Já no cristianismo, a presença da deusa-mãe não é, sequer, cogitada. O Deus-pai, onipotente, onipresente e onisciente teria fecundado, gestado e parido o Universo, sozinho.

No Ocidente, durante a Idade Média, a cada nova descoberta da Ciência, cientistas eram condenados à fogueira pela Inquisição, acusados de heresia. A Igreja não admitia a difusão de ideias que contrariassem a versão bíblica, por ser inimaginável o Todo sem a existência prévia do Deus-criador.

A teoria apresentada pela Ciência, para a criação do Universo (o Big-bang), é a de que houve a explosão de um átomo primordial, há aproximadamente 13,7 bilhões de anos, e que a sua expansão resultou no esfriamento de uma esfera incandescente que deu origem ao Universo, e que a Terra seria, apenas, mais um planeta entre os diversos corpos existentes no Cosmo. A partir daí, as reações químicas formaram micro-organismos que evoluíram, chegando-se à vida na Terra tal qual a conhecemos.

Conciliar as cosmovisões científica e religiosa é uma tarefa que exige lucidez e isenção dos que se debruçam sobre a questão. As paixões precisam ser deixadas de lado, até porque as próprias religiões têm entre si visões diferentes do princípio de tudo, se é que faz sentido a sequência início, meio e fim quando a questão ultrapassa os limites da compreensão humana. Cada cultura mantém a sua cosmovisão, em relação à origem do Universo, relacionada com seus hábitos e suas crenças.

O conhecimento das civilizações pré-históricas (3.500.000 a 4000 a.C), das quais se tem inúmeros registros antropológicos, arqueológicos e históricos, decifrados por estudiosos que se debruçam sobre o tema com afinco há muitos e muitos séculos, mostra a presença da mulher como centro da vida e no surgimento das artes, da linguagem oral, da metalurgia e da domesticação de animais. Figuras e símbolos femininos aparecem em fartas evidências arqueológicas demonstrando uma convivência pacífica de colaboração, coleta e distribuição de alimentos em sociedade. Tudo indica que não havia domínio de um gênero sobre o outro; que a convivência era pacífica, e as mulheres possuíam uma intuição aguçada, ligada às energias criativas. Elas celebravam a vida, a beleza e a harmonia da natureza, mas também cultuavam os processos de morte e transformação. Eram reverenciadas como fiandeiras guardiãs da teia dos fios invisíveis que ligavam os humanos ao Cosmo, e possuíam um lugar de destaque na sociedade.

A partir de 5000 a.C. as mudanças começaram a acontecer com o fim das culturas pacíficas e a dominação do homem pela força física. O sentimento representado na mitologia romana por Invidia (a inveja) materializa-se nas guerras pela disputa de território. As catástrofes naturais marcam um período de transtorno e destruição. A negação do feminino enseja a distribuição da riqueza, não mais pela cooperação, mas sim pela violência. Há uma modificação nas relações de convivência, e o modelo de sociedade passa a ser o do domínio, da hierarquia autoritária e da tecnologia da destruição. A mulher passa a ser troféu de guerra e objeto de prazer e procriação. Está instituído o patriarcado, que irá se prolongar até os dias atuais, apesar da luta incessante da mulher pela sua afirmação na sociedade.

Entram em cena os sacerdotes e patriarcas com prescrições e proscrições que regulam a vida da mulher – o castigo para aquela que cometesse adultério era o apedrejamento até a morte; dar à luz tornou-se um ato impuro e, após o parto, ela deveria ficar isolada de todos guardando resguardo durante vários dias.

Vida que segue – na Idade Média, além da violência física contra a mulher, é acrescentada a violência simbólica. A busca pelo conhecimento se torna crime para as mulheres visionárias, cientistas, teólogas e artistas. A nova visão sobre a Natureza e o Cosmo é demonizada pela Igreja, que impõe medidas drásticas e desumanas às mulheres. Começa a caça às bruxas, institucionalizada pelo Tribunal da Inquisição do Santo Ofício. O clero se encarregou de demonizar o ato sexual como forma de justificar a produção independente do Universo, a virgindade de Maria, o celibato dos religiosos, a virgindade das moças antes do casamento. O que deveria ser normalizado pela sociedade eram os pulinhos do homem fora do casamento. O crescimento das heresias era a demonstração da insatisfação popular com o excesso de poder da Igreja, o que antecipou os movimentos da Reforma Protestante. A mulher adúltera, a curandeira e a insubordinada eram queimadas vivas. Até pouco tempo, o código civil brasileiro protegia o homem que assassinasse a mulher, motivado por adultério – o crime era praticado em legítima defesa da honra. Por isso ele era absolvido continuando livre para matar novamente.

Não pode ser negada a existência de um princípio na Natureza que se repete em todas as formas de vida, que é o da fecundação da fêmea pelo macho (com raras exceções) tanto no reino animal quanto no vegetal, com variações na forma de gestar e parir. Seguindo a lógica deste princípio, o Universo não poderia ter sido fecundado, gestado e parido por um macho sozinho – o Deus-pai, sem a participação da fêmea – a Deusa-mãe.

O movimento feminista não pretende tomar para si o protagonismo da reprodução das espécies, em detrimento do papel do macho, mas exige o reconhecimento de sua participação na sociedade, em igualdade de condições com o homem, diante das diversas tentativas de seu apagamento, em todos os setores, ao longo da história da humanidade.

O reconhecimento desses fatos é de suma importância para a compreensão do retrocesso civilizatório que vem se acelerando nos últimos tempos, e para que uma nova concepção do feminino seja criada, difundida e reconhecida como necessária ao entendimento, à paz, à cooperação e ao cuidado, atributos preteridos pelo modelo de desenvolvimento atual, fundamentado no modelo patriarcal que, entre outras coisas, coloca a mulher numa posição de submissão e inferioridade, eliminando as suas chances de ter representatividade proporcional aos homens em cargos com poder de decisão, nas esferas pública e privada; de receber o mesmo salário que os homens ao ocupar a mesma função; de dividir com eles, proporcionalmente, as tarefas domésticas, etc.

Apesar de relegadas à condição de parideiras e cuidadoras, durante séculos, a humanidade deve à coragem e ao espírito libertário de mulheres extraordinárias, as conquistas obtidas em diversas áreas, e que hoje delas desfrutamos e nos reabastecemos para dar continuidade à eterna luta que assume novas feições à medida que novas formas de desqualificação da mulher vão surgindo e exigindo mais providências.

A pecha de ser agente do demônio foi imputada à mulher pela narrativa da Igreja, que colocava Eva como nascida de uma costela torta de Adão e, portanto, nenhuma mulher poderia ser reta. A justificativa pode ser encontrada na publicação de 1487 – Malleus Maleficarum – O Martelo das Feiticeiras, espécie de manual de diagnóstico para bruxas, dividido em três partes: na primeira, os juízes eram ensinados a reconhecer as bruxas em seus múltiplos disfarces e atitudes; na segunda, todos os tipos de malefícios eram expostos e classificados; e na terceira, as formalidades para agir legalmente contra as bruxas; como inquiri-las e condená-las, tanto nos tribunais civis como eclesiásticos.

As teses centrais do Malleus Maleficarum são fundamentadas na ideia de que o demônio, sob a permissão de Deus, procura fazer o máximo de mal aos homens para apropriar-se de suas almas, e que este mal é feito prioritariamente através do corpo, único canal que pode ser dominado por Satã. A influência demoníaca é exercida através do controle da sexualidade, primeiramente do corpo, e depois da alma do homem que, aos olhos da religião, passa a ser vítima dos sortilégios femininos.

Todo este preâmbulo abre o debate sobre o tema “Gaia: a deusa-mãe”, que tem o propósito de trazer à luz uma discussão antiga, porém mal resolvida, que chega ao século 21 colocando na mesa o assunto que não pode mais ser levado ao sabor dos ventos. Inúmeras mulheres perderam a vida durante séculos na luta pelo reconhecimento de seu papel no processo civilizatório, não para disputar com os homens a sua superioridade, porque isso as tornariam piores do que eles, mas sim para refletir junto sobre cuidado, amorosidade, solidariedade e justiça, atributos necessários à sobrevivência das espécies e à paz entre os povos.

Todas as tentativas de apagamento da importância do papel do feminino na existência humana, vem se refletindo nas consequências do descaso com que Gaia vem sendo tratada ao longo do tempo, apesar de ser a fornecedora de alimento, abrigo e as condições necessárias para que o humano seja capaz de construir o seu próprio mundo.

Para a desgraça da humanidade e o retrocesso do processo civilizatório, o humano coloca em risco a sobrevivência das espécies ao ceder às tentações dos desejos insaciáveis, abdicando dos atributos do feminino que mantêm viva a biodiversidade.

A coletânea Gaia: a deusa-mãe é um documento histórico no qual representantes de diversos setores da sociedade resolvem registrar a inquietação comum que se reflete na urgência da mudança de atitude para a salvaguarda das espécies em vias de extinção, entre elas a humana. E essa mudança passa pelo reconhecimento do papel do feminino, relegado durante grande parte da história das civilizações em prol de interesses individuais e grupais fermentados no cadinho da ganância, da inveja e do egoísmo.

Uma afirmativa ousada diz que o desrespeito à Gaia, a deusa-mãe, é um reflexo do desrespeito à mulher, e que a reversão do processo de destruição que atinge a humanidade, colocando em risco todas as espécies, passa pelo reconhecimento dos atributos do feminino como essenciais ao comportamento do ser humano civilizado.

Salete Rêgo Barros
Editora e organizadora

Gostou? Compartilhe!

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *